Causa espanto o fato de o Banco Central (BC), afastando-se de seu papel de guardião da moeda, ter elaborado uma medida para beneficiar exclusivamente um segmento da economia, a indústria automobilística, com a liberação de R$ 18 bilhões dos depósitos compulsórios para que os bancos aumentem a oferta de financiamentos a quem quiser comprar automóveis. Mais espantoso, ainda, é o modo como essa liberação foi feita, às pressas, deixando nítida a disposição da diretoria da instituição de aceitar sem resistência as pressões do Palácio do Planalto por medidas que estimulem o consumo e comprovando, na prática, o abandono dos objetivos de um verdadeiro banco central.
Desde meados do segundo semestre do ano passado, quando a crise europeia passou a afetar mais fortemente a economia brasileira, decisões consideradas precipitadas ou inconsistentes com os dados conjunturais - sobretudo a evolução dos preços, que deveria ser sua preocupação central - vêm mostrando a propensão da diretoria do BC a, abrindo mão de sua autonomia e afastando a instituição de sua missão principal, "colaborar" com o governo. Contrariando expectativas de respeitados economistas do mundo acadêmico e do mercado financeiro, o que abalou a credibilidade dos dirigentes da instituição, decisões do Banco Central passaram a se confundir com ações da política econômica do governo.
Ministros de Dilma, alguns sem nenhuma responsabilidade na área econômica, têm falado com frequência sobre a atuação do Banco Central, indicando-lhe sem qualquer cerimônia caminhos a seguir. Pelo menos publicamente, a presidente tentou conter a avidez com que seus auxiliares têm se lançado sobre o BC, ao afirmar, há alguns dias, que "em meu governo, é o BC, nem eu nem ninguém, quem tem autorização para falar de juros". No governo Dilma, passou-se a falar menos de juros fora do Banco Central, mas interferências externas sobre a política monetária são cada vez mais evidentes. E elas partem diretamente da presidente.
Como mostrou reportagem de Beatriz Abreu publicada no Estado de quinta-feira, quando se trata de política econômica, Dilma não pede, ela manda fazer. Isso vale para todos os seus auxiliares - e, entre eles, agora está o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini. A descrição feita pela repórter do modo como se decidiu a liberação dos compulsórios e de como foram tomadas as providências técnicas e formais necessárias para sua adoção na prática não deixa dúvidas quanto à subordinação da diretoria do BC aos interesses do governo.
A liberação foi decidida numa reunião em São Paulo do ministro da Fazenda, Guido Mantega, e de Tombini com representantes da indústria automobilística e de grandes bancos privados. Mas, para torná-la efetiva junto com outras providências que seriam anunciadas dali a pouco pelo governo para estimular as vendas de automóveis, era necessária sua aprovação pela diretoria do BC no mesmo dia, para sua publicação oficial no dia seguinte, quando ela passaria a vigorar. Tombini se dispôs a fazer isso, indo às pressas de São Paulo a Brasília, convocando a diretoria do BC e, como queria o governo, obtendo a aprovação formal da liberação dos compulsórios.
Por causa do alto nível dos recolhimentos sobre os depósitos à vista e a prazo que os bancos precisam fazer compulsoriamente ao BC - sem receber remuneração por isso, o que encarece suas operações e contribui para ampliar o spread bancário e os juros -, a diretoria da instituição já estudava a liberação total desse dinheiro. Mas pretendia fazer isso em agosto. Por pressão do governo, teve de agir às carreiras, antecipando a medida em dois meses.
Tendo aberto mão da autonomia operacional de que desfrutou durante o governo anterior, o Banco Central tornou-se, no governo Dilma, mais um instrumento do Palácio do Planalto para intervir na economia. Dessa forma, cada vez mais se distancia do cumprimento de sua missão - "assegurar a estabilidade do poder de compra da moeda e um sistema financeiro sólido e eficiente" - que, inscrita logo abaixo de seu símbolo na sua página eletrônica, começa a soar como uma ironia.
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