terça-feira, 26 de junho de 2012

No ponto certo:: Míriam Leitão

Na democracia, são indispensáveis o direito de defesa e o devido processo legal, mesmo nos julgamentos políticos. Isso faltou ao presidente Fernando Lugo. Se está escrito na Constituição que um ato sumaríssimo pode retirar o presidente do exercício do seu mandato, isso é sinal de imperfeição da democracia paraguaia. A região foi assolada demais por ditaduras para aceitar agressões aos valores democráticos.

O Brasil fez bem em demonstrar a gravidade do tema, desde o primeiro instante, através da reunião de emergência dos presidentes da América do Sul, do envio do chanceler Antonio Patriota, da convocação do embaixador, e ao ser a favor da suspensão do Mercosul e da Unasul.

Não há muito mais o que fazer. Mas isso é forte o suficiente para o Brasil deixar claro sua discordância com a maneira com que Lugo foi retirado do cargo. Impeachment existe em qualquer país, e os casos Nixon e Collor mostram isso. Em ambos, houve investigação, direito de defesa, e o processo legal foi respeitado. O fato de Collor ter sido absolvido pela Justiça tem a ver com as falhas da peça da Procuradoria Geral da República, mas os elementos de formação de culpa no processo no Congresso foram suficientemente robustos. Não há comparação possível entre os casos de impeachment no Brasil e no Paraguai.

Lugo não foi bom presidente, e já não tinha o mínimo apoio no Congresso, como se viu. Mas isso não torna legítimo o ato da sua deposição. O fato de ser um governo ruim não justifica que seja retirado do poder sem passar pelos trâmites normais. A democracia exige respeito aos seus pilares incontornáveis e aos seus rituais.

O governo Lula sempre defendeu os métodos de Hugo Chávez de, na aparente legalidade, desrespeitar as regras democráticas. Aos poucos, Chávez destruiu a independência dos poderes, solapou a liberdade de imprensa, revogou a alternância no poder. Foi reeleito várias vezes e pode até voltar a sê-lo, mas isso não torna democrático o seu governo. Ele usou a democracia contra a democracia. O fato de o governo brasileiro ter dado demonstrações públicas de concordância com os métodos de Chávez não é justificativa para se pedir a mesma leniência com o Paraguai.

No caso de Honduras, a diplomacia brasileira estava certa quando condenou imediatamente a deposição de Manuel Zelaya. Errou quando permitiu que a embaixada passasse a ser um centro de propaganda e articulação política do presidente deposto.

Um continente devastado por ditaduras, e que tem tido mais períodos autoritários do que de plenitude democrática, tem que ser rígido nesta questão. Por isso, a imediata condenação por parte do Brasil é a atitude correta. O fato de o Tribunal Superior de Justiça Eleitoral do Paraguai ter comunicado ontem que reconhece o governo como legítimo é tão bom quanto o subserviente Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela concordar com todas as barbaridades executadas pelo governo Chávez. O governo brasileiro usou dois pesos e duas medidas, mas errou com Chávez e acertou com o Paraguai. Um erro não justificaria outro erro. Já era hora de a diplomacia acertar o passo e não relativizar valores.

Os eleitores paraguaios já tinham encontro marcado com as urnas, em abril de 2013, para decidir ou não por trocar o comando político do país. A maneira serena como Lugo reagiu à deposição é correta. As armas estavam apontadas contra os populares que o apoiavam. Qualquer outra atitude poderia levar a um conflito com mortes. E todos sabem de que lado penderiam as vítimas: do lado que não estava armado.

A relação com o Paraguai é complexa, por isso, antes de falar em retaliação comercial é preciso olhar números e fatos. O Brasil tem superávit comercial. Em 2011, nosso saldo foi positivo em US$ 2,25 bilhões: exportamos US$ 2,96 bilhões e importamos US$ 715 milhões. Mas esse número não conta tudo.

A estatística do comércio bilateral não registra o fornecimento de energia, que é o mais relevante nos negócios entre os dois países. As exportações de energia para a Argentina e as importações da Venezuela entram na balança comercial. O argumento para o não registro é que Itaipu é uma empresa binacional. Argumento desprovido de razão, porque é uma binacional mas que tem divisão clara. Metade da energia é do Brasil, a outra metade é do Paraguai, mas o país vizinho tem que vender preferencialmente para o Brasil. E vende quase toda a energia que tem disponível porque consome pouco. Os dados da empresa, fornecidos ontem, foram que no ano passado o Brasil pagou US$ 268 milhões pela energia paraguaia.

O Paraguai é dramaticamente dependente da usina, e o Brasil depende da energia fornecida pelo Paraguai. Vem de Itaipu quase 20% de toda a energia elétrica consumida no país. Como o sistema é interligado, qualquer problema de fornecimento afetaria todo o Brasil. Os brasiguaios que garantem a produção agrícola do Paraguai estão eufóricos com a queda de Lugo porque temiam o movimento campesino.

O tema não é trivial. A atitude certa é a parcimônia no falar, a eloquência no gesto diplomático, e o cuidado nas reações na economia.

FONTE: O GLOBO

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