- Folha de S. Paulo
Uma nova política da repressão aparece ao lado da politização expansiva e bem-humorada
A política está sambando na avenida. Não consigo me lembrar de uma escola ridicularizar um presidente de maneira tão direta quanto a Paraíso do Tuiuti fez com o vampiro neoliberalista, cuja reforma trabalhista seria uma reedição da escravidão. Discordâncias políticas e econômicas à parte, é sinal de liberdade de expressão que se possa falar mal do governo Temer publicamente sem receio de intimidação; algo que definitivamente não era o caso sob Dilma.
Afinal, se há uma ocasião em que toda zoeira com o poder deveria ser permitida e até incentivada, é no Carnaval. De máscaras de Lula e Gilmar Mendes a gritos de Fora Temer, o escracho não pode ser reprimido. Ele reflete o fim de qualquer crença na política institucional; sentimento que, embora talvez impotente para colocar manifestantes na rua, pode aflorar como brincadeira no Carnaval.
Ao lado da politização expansiva e bem-humorada vem também uma nova política da repressão. Não é o governo, mas movimentos da esquerda identitária que ameaçam reprimir a alegria e a criatividade popular na hora de pensar fantasias. A causa que os move é banir fantasias que ofendam membros de minorias. Da noite para o dia, fantasias tradicionais (índio, muçulmano, japonês, nega maluca e até mulher) foram proscritas.
A ativista indígena Katu Mirim lançou no sábado (3) a campanha #ÍndioNãoÉFantasia, em que diz que se fantasiar de índio é racismo. E se é uma índia falando, temos que acatar, não é? Ela tem lugar de fala. O contraponto veio na sexta-feira. A empreendedora e também ativista indígena Ysani Kalapalo fez outro vídeo, dizendo que, ao contrário, para ela isso é visto como homenagem; no seu povo eles se sentem felizes e valorizados. Indígenas, como todo ser humano, pensam cada um de um jeito.
Penso que mais relevante do que saber se alguém se ofende com uma fantasia (há ofendidos para tudo) é saber se é razoável se sentir ofendido. Parte-se da premissa de que a única reação possível a uma versão meio estereotipada de uma categoria a que se pertença seja a ofensa mortal. A veneração solene vira então a única postura aceitável perante a diferença. Por isso, que cada um fique no seu quadrado.
Essa atitude não une os diferentes; ela afasta. É o exato oposto da atitude brasileira padrão: imitar o diferente em clima de brincadeira. Não seremos mais um povo cheio de variedade, e sim negros contra brancos, homens contra mulheres, índios contra brancos, etc.
O humor que não busca humilhar —e que aceita ser provocado de volta— não é ferramenta do ódio, e sim antídoto. É podendo incorporar ludicamente as diferenças alheias num clima de leveza que elas deixam de ter o peso da discriminação. Na alegria partilhada, e não na militância sisuda, residem nossas melhores chances de superar as barreiras do preconceito.
Não: a fantasia de Carnaval não é uma tese de doutorado que distingue as particularidades de cada cultura indígena; também não é uma correção de injustiças sofridas pelos antepassados de índios e negros. É só um dos jeitos que pessoas comuns encontram para brincar com o que é diferente e, brincando, se aproximarem.
Dito isso, se você ainda estiver preocupado e quiser ficar 100% a salvo dessa censura que vem de baixo, vale a regra da nova militância: não se fantasie de nada que você não seja. Bom fim de carnaval!
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