segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Cacá Diegues - Para onde queremos ir

- O Globo

Polarização entre velhos extremos é um conforto para quem não se interessa em encontrar e praticar alternativas

Vivemos num mundo em transformação. Isso parece óbvio, porque o mundo sempre esteve em transformação, o tempo todo. Mesmo que as circunstâncias, às vezes, o levem a uma transformação para trás. Quando isso acontece, não é por muito tempo que dura o tempo de atraso. Outras vezes, como penso que agora, trata-se de uma transformação radical e inevitável, uma negação de quase tudo que veio antes, por necessidades geradas pelas circunstâncias da vida. Um pouco como quando o Iluminismo se desenvolveu e conquistou a Europa culta, como uma resposta ao religiosismo fanático e inquisitorial. Ninguém se dispensa de ser feliz.

Ao fim da Guerra Fria, quando o Muro de Berlim caiu, há 30 anos atrás, cogitou-se até em considerar a História como finalizada. Não haveria mais para onde ir, depois do encerramento da dicotomia que, como sempre, dividira a humanidade. Era como se um dos lados em litígio tivesse ganhado a guerra e não houvesse mais o que fazer. Hoje sabemos que ainda havia muito o que fazer, que haverá sempre o que fazer. Sobretudo num país como o Brasil, um país que nunca soube direito o que ele próprio era, embora tivesse se elaborado tanto, cheio de planos e sonhos que nunca se realizaram.

Com a Ancine no Ministério do Turismo, sob a tutela de Roberto Alvim, o desbocado, talvez não se possa mais mostrar favela e sertão nos filmes brasileiros, não sei. Esses temas de artistas indignados não cooperam com o luxo de cruzeiros náuticos e semelhantes turísticos. Mas as favelas e o sertão continuam lá, onde sempre estiveram, com crianças sendo assassinadas todo dia e gente morrendo de fome, além de rios secando ou poluídos por desastres.

Quem sabe seja esse, no final das contas, o recado do governo depois de tanto desmerecer, subestimar e condenar os filmes que andamos fazendo até agora. Não escapou nenhum. Se quiserem trabalhar, os cineastas brasileiros, como outros artistas do país, terão que adivinhar o que eles querem de nós.

Por outro lado, Lula livre podia ser um bom argumento para se esquecerem um pouco da gente, se dedicarem um ao outro. Mas o neo-novo personagem não tem mais muita coisa para dizer, já ouvimos os discursos da largada, são os mesmos de sempre. Neles, ele falou mal da Rede Globo, a única emissora que transmitiu, de cabo a rabo, seu discurso daquele dia. Lá para as tantas, disse que o presidente governava para os milicianos, ou coisa que o valha. E, mais adiante, ironizou-o dizendo que, como não queria saber de trabalhar, o capitão entrou para as Forças Armadas. Tudo, como sempre, no mesmo padrão de radicalidade sem ideias, ao sabor do vento de idiossincrasias, queimando as possibilidades de diálogo em busca de pensamento e ação novos. No fundo, Bolsonaro e Lula acham que o mundo não existe sem os dois.

No Chile, o povo está nas ruas contra o populismo aristocrático, a direita de Sebastián Piñera. Na Bolívia, o povo saiu às ruas contra o populismo salvacionista, a esquerda de Evo Morales. Os dois, cada um em seu país e a seu modo, trataram seus povos como incapazes de escolher o que desejam. A velha praga latina do caudilhismo, do desrespeito aos programas anunciados, quando eles não rendem mais voto ou grana. O desrespeito à Constituição de cada um, ao prometido e ao jurado. A polarização entre os velhos extremos é um conforto para quem não se interessa em encontrar e praticar alternativas. Ou para quem tem preguiça de pensar.

Nada disso serve mais a ninguém. É uma disputa no passado que já devia ser remoto, um retorno de direita ou de esquerda ao que não interessa mais. É inevitável pensar no livro novo de Mangabeira Unger, “O homem despertado”, que o “New York Times” simplificou chamando o autor de “visionário incansável”. Nele, Mangabeira diz que a transcendência política é hoje “a capacidade de cada um de nós ser maior do que suas circunstâncias”.

No Brasil, gostei foi da ideia de um segundo turno com três candidatos. O eleitor não seria mais prisioneiro da obrigação do mau voto. Haveria sempre um tertius que nos permitiria recusar a esterilidade dos dois lados eternos. Recusar o ódio cego e fatal, fazer ciência e poder pensar.

Claro, não é a ciência que vai salvar o mundo. Mas ela não pode ser ignorada, porque nos diz o que somos e de onde viemos. Assim como a cultura nos faz imaginar o melhor para nós, nos faz escolher para onde devemos ou queremos ir. Aonde chegaremos.

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