terça-feira, 10 de março de 2020

Paulo Fábio Dantas Neto* - Prudência e urgência (razões de tática e estratégia políticas)

Pouco mais de um ano de governo Bolsonaro e tornou-se um bordão, aceito em amplos ambientes, a ideia de que os democratas brasileiros precisam se articular e se entender para derrotar a estratégia de enfraquecimento da democracia representativa, levada a cabo pelo Presidente da República. Situação limite essa, pois caberia, a quem ocupa esse posto, ser justamente o mais poderoso e eficaz defensor do regime e da Constituição, graças aos quais chegou aonde está. Os fatos, porém, já não deixam dúvida de que temos um presidente subversivo da lei e da ordem. Esse ponto é tacitamente reconhecido, seja por quem aplaude, seja por quem abomina a sua conduta golpista. Quem aplaude admite lhe dar ainda mais poderes para, supostamente, mandar os políticos embora. Quem abomina, busca a melhor maneira de atalhar esse seu caminho.

No campo bolsonarista, eventuais dúvidas táticas sobre como levar ao sucesso a sua estratégia golpista resolvem-se com ordens do dia de um capitão que se tornou especialista em constranger generais. A ordem em vigor, no momento, convoca abertamente, para o próximo domingo, 15/03, uma manifestação de rua, fisicamente próxima à Praça do Três Poderes, para aclamar o presidente e contestar as autoridades ocupantes dos dois outros poderes da República. A essa altura, a sociedade, apreensiva, já se pergunta, com razão, o que farão a Polícia Militar e as Forças Armadas se algum dos dois poderes postos na berlinda solicitar, legitimamente, sua proteção, em caso dessa manifestação sair dos limites razoáveis e degenerar em agressão direta como, aqui e ali, há muito tempo se ensaia. Augusto Heleno esteve só, em sua provocação golpista? Poderia ser devidamente “enquadrado”, por seus interlocutores na ativa, depois daquelas declarações? Autoridades militares responsáveis e comprometidas com a democracia terão força para não deixar que o ovo da serpente alimente os apetites e contamine a corrente sanguínea de seus pares e comandados?

Essas perguntas não calam porque nenhuma pessoa sensata, que observe com atenção a cena política atual, ignora que as cúpulas dessas corporações já podem estar sofrendo uma dupla pressão nas bases que, por hierarquia profissional, comandam. Refiro-me à disseminação, pelo aparelho de doutrinação bolsonarista, em estratos mais baixos da oficialidade das forças armadas, de uma nostálgica ideologia golpista e salvacionista que a derrota do regime autoritário na transição democrática dos anos de 1980, seguida de três décadas de democracia, puseram em desuso naquele ambiente. Em que grau essa subversão de valores democráticos já avançou recentemente na corporação é algo que só pode ser sabido por quem detém informações privilegiadas. Mas o processo preocupa, assim como deve preocupar também a pressão corporativa que pode emanar, em grau crescente, ainda mais embaixo, diante de uma eventual indisposição, por dever constitucional, de comandantes militares com um presidente subversivo. Sim, pois esse presidente e seus filhos propagam um discurso demagógico que acena às tropas com vantagens materiais e, no caso de policiais transgressores da lei, também com uma odiosa impunidade.

Já nas instituições civis e no campo político heterogêneo que se opõe a essa aventura, parece ainda estar longe o momento em que uma estratégia comum será pactuada. Ela convém, entre outras razões, para tornar consequente a tática de evitar o confronto, que tem sido intuitivamente adotada por todos, por cálculo político racional, e/ou por receio de retrocesso institucional. Paciência e moderação têm sido as contraordens que até aqui interditaram o caminho, democraticamente justificável, de um processo de impeachment, para o qual o presidente já forneceu vários motivos, cometendo sucessivos crimes de responsabilidade.

O bom senso já nos sugere supor que esses crimes estão sendo cometidos deliberadamente, como um risco calculado, para antecipar um confronto político, num momento em que se sabe ainda não existir, no Congresso, maioria qualificada para impedir o presidente. E ela não existe justamente porque ainda não há, no eleitorado, clara rejeição ao presidente (como já existe na sociedade civil), nem há, no empresariado, convicção sobre o malogro da atual política econômica. Com eleitores divididos e empresários indecisos, o Congresso fica neutralizado para um confronto, embora possa operar – e tem operado - como importante força política de contenção do golpismo presidencial.

Assim, ao usarem o cálculo político, lideranças do Congresso e das demais instituições civis têm conseguido evitar que Bolsonaro converta a eventual rejeição de uma denúncia contra si em capital político, isto é, em trunfo para avançar mais em sua estratégia golpista. Ao falarem com prudência sobre o tema, as forças políticas mais responsáveis do País têm evitado dar, ao bolsonarismo, o pretexto que busca para colocar a sociedade (e as forças armadas) diante de um dilema crucial entre um quadro de desordem e uma solução autoritária. Cenário plausível, pois não temos mais direito a duvidar de que a lógica miliciana que guia o Presidente não hesitará em fomentar (inclusive apelando à violência e ao terror) tal quadro problemático para obter tal solução.

Tudo correto, portanto, com a tática dos democratas. Mas alguma tática, por mais racional e prudente que seja, pode ter sucesso, em política, se não estiver ligada, de modo politicamente convincente, a uma estratégia? É possível defender a democracia com eficácia política pensando só em prevenir, isto é, tratando-a - para reiterar jargão conhecido - como plantinha tenra que se deve regar todo dia, tal qual bem alertava Octávio Mangabeira, como sugestão de conduta virtuosa para tempos normais? Se não estamos em estado de exceção, mas estamos num tempo de gravidade excepcional, é preciso ver que a democracia é mais que uma planta tenra. Sequer é só uma árvore.

É complexa floresta de instituições, direitos e interesses, que pode ser agredida, inclusive, pelo manejo demagógico dessa malha. A democracia representativa precisa não apenas ter, mas demonstrar, sempre, a força necessária para dissuadir aventureiros, quando eles a testam.

A missão não é fácil pois o terreno do trabalho atual é pantanoso. A estratégia dos golpistas é ajudada pela imagem má que políticos e partidos têm perante a sociedade e o eleitorado. Aqui não tenho como me deter sobre razões e não razões desse fenômeno, mas chamo a atenção para o fato de que a imagem negativa se refere a apenas um lado da realidade da democracia representativa.

O outro lado, muito positivo, é o suculento inventário de conquistas democráticas que encontram no Congresso uma usina de processamento. A agenda de políticas públicas socialmente positivas avançou muito no Brasil desde que superamos a ditadura militar e isso se deve, fortemente, a processos de elaboração e negociação legislativa. No fundo, o povo sabe disso e não se pode precipitadamente achar que sua insatisfação com outros aspectos da atividade de representação política leve a que ele queira abrir mão dela, seja para entregar seu futuro a ditadores, seja para cair na ilusão de que pode, como povo, governar diretamente o País. Pode ter faltado ao povo brasileiro, no passado, ocasiões de participação maior, para exercer uma cidadania mais qualificada e pode estar lhe faltando hoje um cardápio de representantes de melhor qualidade. Mas algum senso de medidas não lhe falta, mesmo quando suas necessidades e medos abrem espaço a demagogias populistas. Por isso, entre nós, jamais tiveram durabilidade aventuras caudilhescas irresponsáveis, ou discursos meramente utópicos. Nossas elites políticas, mesmo quando não democráticas, precisaram sempre negociar sua legitimação no terreno das realizações concretas.

Mas preocupa, e muito, a ausência ou, ao menos, a invisibilidade, na atual conjuntura, de uma estratégia política comum das forças democráticas, que se preocupe com movimentos táticos, mas também as prepare, desde já, para desdobramentos que não se pode prever de antemão. Deixo claro que não se trata de propor que persigam objetivos político-eleitorais que supostamente possam unir democratas de direita, de centro e de esquerda. Isso é quimera. Trata-se de cuidar, em conjunto, da preservação de condições para que disputas democráticas continuem acontecendo. Isso passa por não deixar dúvidas na opinião pública sobre a capacidade das instituições se fazerem respeitar, inclusive pelos poderosos. Do mesmo modo, não se trata de fazer análises adivinhadoras de cenários futuros, como se ações políticas devessem se orientar por essas especulações. Sabemos que nenhuma linha de ação tem futuro se não se ancorar no que há, no aqui e no agora. Trata-se é de não deixar que um poderoso inimigo da democracia representativa jogue solto e decrete o futuro como resultado de ações ousadas no presente. Ponho-me entre aspas para recorrer a uma metáfora que usei em artigo publicado há três meses: “um desafio à política positiva é ser eficaz na conjuntura. Seus praticantes não podem ser uma zaga que olha para a bola, com foco eleitoral em 2022, sem marcar o atacante demolidor” (Política positiva e política negativa, Estadão, 01.12.2019).

Na ausência de estratégia defensiva comum, cada zagueiro age à sua maneira. Declarações do ex-presidente Lula, em recente homenagem que recebeu da esquerda francesa, se ajustam como uma luva à metáfora acima. Aposta suas fichas num novo embate eleitoral polarizado, em 2022. Nessa posição há dupla racionalidade política: objetivamente, ele lidera, de fato, o partido que ainda é a maior força eleitoral da oposição e que, por isso, pode pensar em desafiar eleitoralmente o bolsonarismo, nem que seja para conservar essa condição de polo de oposição, que conquistou em 2018. E, subjetivamente, Lula raciocina ser esse o melhor modo de seguir politizando seu embate com a Justiça brasileira. Porém, ao dizer que esperar 2022 é dever democrático, ele não apenas descarta, por ora e por realismo político, a defesa de um processo de impeachment. Vai mais longe e admite que Bolsonaro ainda não cometeu crime de responsabilidade que o justifique. Relaxando assim na marcação do atacante agressivo, esse “bom mocismo” fará, da ala do lado esquerdo da defesa democrática, uma avenida. Quantos gols serão marcados por ali até um zagueiro democrata poder se arriscar a um contra-ataque nesse sonhado 2022? Em quanto já estará o placar em favor do time cuja estratégia é asfixiar a democracia? Que chance haverá de haver uma eleição livre?

Zagueiros democráticos mais ao centro (os do fugidio centro político e os que ocupam posições institucionais centrais) costumam usar retórica crítica mais contida que a do PT, porém têm sido mais diligentes na marcação do atacante. Ainda assim não escapam da carapuça da metáfora. Marcam por zona, evitando o enfrentamento individual, justamente porque operam instituições e – é preciso reconhecer - elas objetivamente têm impedido, até aqui, demolições explícitas. Mas os recuos que conseguem impor revelam-se efêmeros porque dirigem ao atacante seguidas advertências, mas não sanções por violação das regras. Assim, no momento seguinte, novos ataques voltam a deixar a defesa em permanente estado de tensão e perigo. Contudo, prevalece sempre a tática da paciência de jardineiros de plantas tenras, sancionada por recentes declarações do também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um experimentado político orgânico que a realidade quer converter em outsider. Aos atores com seu perfil político e aos que detém poder real também cabe fazer a mesma pergunta que pode ser feita à esquerda petista: até que ponto arranhões parciais restantes após cada escaramuça poderão esgarçar - ou já esgarçaram, de algum modo - o tecido da democracia, a ponto de comprometer a chance de chegar-se a 2022 ao menos no compasso da situação atual? O enfrentamento, que táticas prudenciais querem evitar agora, poderá ser evitado se, em dado momento, a infiltração antidemocrática tiver corroído o Estado a ponto de setores decisivos seus comportarem-se como milícias? Haverá eleições “normais” se o bolsonarismo pressentir uma derrota eleitoral? E havendo eleições que, porventura, confirmem sua derrota, haverá paz para que haja governo? Que poder de retaliação terão, então, caminhoneiros em pé de guerra e policiais amotinados, se os laços que os une hoje ao bolsonarismo prosperarem por um continuado e desabrido uso não republicano do poder? E que reação se pode esperar das instâncias judiciais diante dessas retaliações, após as mudanças que podem ser feitas no STF até lá?

Zagueiros com um terceiro tipo de perfil político são imprescindíveis numa hora dessas. Refiro-me a uma direita conservadora que ainda não entrou para valer em campo e precisa entrar. Um cochilo da ala direita, na marcação de um atacante que se apresenta como conservador, embora seja o seu oposto, pode ter efeito bem mais devastador para a democracia representativa do que cálculos políticos e eleitorais de uma esquerda fora do poder. Um conservadorismo político que mereça esse nome não pode, depois de tantas lições do passado, compactuar com uma estratégia desestabilizadora da ordem e das instituições moderadoras, que tenta emparedar o Congresso, intimidar o Judiciário e sabotar, ao modo do chavismo (ver Demétrio Magnoli, “O povo e Exército” – FSP, 29.02.2020) a hierarquia das forças armadas. Principalmente não pode chancelar uma propaganda ideológica que quer desacreditar a conciliação como método, no intuito (quimérico, mas nem por isso menos perigoso) de eliminar a chamada “dialética da ambiguidade”, uma marca de origem da nossa tradição política. Conservadores que se prezam não podem coonestar com a conspiração de um governo passageiro para sufocar e assassinar uma tradição nacional.

Democratas ao centro e à esquerda não podem perder de vista que convencer conservadores a tirar o oxigênio da aventura golpista é o objetivo que pode firmar uma estratégia política comum, que falta aos democratas de todos os matizes para darem consequência política realista – portanto, eficácia - à conduta tática prudencial que têm adotado. Essa conduta precisa deixar de ser só intuitiva e reativa, para ser também racional e propositiva. O momento exige equilibrar sensos de prudência e de urgência para dar à sociedade a confiança em que a democracia é a melhor opção e em que golpistas serão enfrentados não só no terreno das ideias, mas também no da política real.

Se a consequência dessa atitude realista será a abertura de um processo de impeachment não é possível antecipar. Mas não se pode tirar a hipótese da agenda, ainda que ela não esteja na ordem do dia. Criar um abismo lógico entre essa eventualidade e a conduta prudencial é um suicídio político prévio. Equivale a subestimar o poder do adversário de provocar destruição e desordem. A conduta prudencial ajuda-nos não apenas a evitar esses males. Também nos afasta da conduta imprudente de, num ambiente polarizado, fazer política sem um objetivo estratégico no horizonte.

*Cientista político e professor da UFBa

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