- O Estado de S. Paulo
Na minha visão, não (respondendo à pergunta do título). Nesta coluna, tento explicar o porquê.
O superchoque do coronavírus parece ser mais um prego no caixão da retomada da economia brasileira em 2020 em ritmo mais animador. No auge do furacão, não há nem como falar quais serão os impactos no crescimento ao longo do ano. Mas certamente o sonho de crescer no intervalo entre 2,5% e 3% parece enterrado nas brumas do passado recente.
Acumulado com expansões anuais de ligeiramente mais do que 1% desde 2017, o resultado projetado para 2020 reacendeu o debate sobre o “fracasso” da política econômica liberal no Brasil.
Com efeito, a partir de 2016, as equipes econômicas que se sucederam no comando da economia brasileira têm perfil liberal e ortodoxo. E fica difícil “culpar o PT” ou a recessão de 2014-2016 pelo que está acontecendo quatro anos depois.
Assim, na arena do discurso político, mais uma narrativa de fracasso do liberalismo vai sendo montada.
Mas será mesmo?
O Brasil é uma economia com carga tributária, ao longo das últimas décadas, dependendo do critério, na faixa de 30-35% do PIB. Países emergentes ao gosto do que pregam os economistas liberais estão numa faixa mais próxima de 20%.
O Brasil gasta por volta de 13% do PIB com Previdência e outros benefícios a idosos, enquanto uma visão ortodoxa de economia recomendaria algo como metade daquele percentual. As pensões por morte brasileiras ultrapassam 4% do PIB, enquanto o número aceitável seria de no máximo 2%.
O déficit público nominal brasileiro em 12 meses roda acima de 5,5% do PIB há vários anos, quando países que “fazem o dever de casa” em termos de ortodoxia costumam ter resultado fiscal equilibrado ao longo do ciclo econômico, ou pelo menos não muito longe disso.
O Brasil ainda tem sistemas previdenciários distintos para o setor público e o setor privado, com o primeiro sendo muito mais generoso. Uma visão liberal da Previdência daria preferência a um sistema único e equânime. No Brasil, grande parte dos benefícios previdenciários e sociais é indexada ao salário mínimo, que cresceu acima da inflação durante décadas, criando uma despesa gigante de transferência que asfixiou os investimentos e a expansão dos serviços públicos. Economistas ortodoxos costumam defender benefícios sociais e previdenciários corrigidos por índices de inflação relativos à cesta de consumo dos grupos que os recebem.
No Brasil, bem mais de 90% do gasto primário federal é carimbado, e, na maior parte, destinado a transferências a pessoas, na forma de Previdência, salários do funcionalismo e programas sociais. Uma abordagem liberal do orçamento, como insiste o ministro da Economia, Paulo Guedes, teria uma grande parcela dos recursos discricionária, e daria preferência a investimentos ou custeio para expandir serviços públicos de qualidade. No Brasil, o investimento público federal (excluindo estatais) é de pífios 0,5% do PIB, o que revela uma estrutura de gasto público que jamais um liberal recomendaria.
No Brasil, o governo destina todo ano subsídios às empresas da ordem de 4% a 5% do PIB, sem nenhuma ou quase nenhuma avaliação sobre os supostos efeitos positivos destas transferências de dinheiro público. A “receita liberal” prevê subsídios muito menores, e cuja manutenção depende da avaliação de impactos.
A Constituição brasileira é muito longa, e dispõe sobre uma enorme variedade de temas, tornando necessárias emendas constitucionais para praticamente todas as mudanças mais profundas na organização do Estado e da economia. Liberais costumam ser favoráveis a Constituições curtas, genéricas e que estabeleçam princípios gerais, de forma que quase toda a política pública pode ser feita por leis ordinárias.
O sistema tributário nacional é um dos mais complexos do mundo, repleto de exceções e regimes especiais. Nos países que economistas liberais veem como modelos, os sistemas tributários são mais simples e tão uniformes quanto possível, com a exceção da progressividade distributiva, em que o Brasil, em particular, não vai muito longe.
A observância tributária e burocrática é extremamente custosa para as empresas que operam no Brasil, e emprega capital humano altamente qualificado. A recomendação liberal é que seja simples e fácil pagar impostos e se adaptar às exigências burocráticas, de forma que os trabalhadores mais preparados e talentosos possam se dedicar a aumentar a produtividade das empresas.
O ambiente de negócios brasileiro é classificado como dos piores do mundo em rankings internacionais de países, que foram criados justamente para incentivar uma visão liberal de organização da economia.
O Judiciário no Brasil é extremamente complexo, lento, ritualístico e formalista. Várias das nações para os quais os liberais olham como exemplo têm sistemas judiciais mais simples, velozes, pragmáticos e com um pé no senso comum.
A maior empresa brasileira, a Petrobrás, é uma estatal que opera em um ambiente que, na prática, ainda é de quase monopólio. Diversos setores produtivos nacionais, como também costuma apontar Guedes, são dominados por um pequeno grupo de participantes, com considerável poder oligopolista. A visão liberal de economia, por outro lado, valoriza a competição.
O Brasil é uma das economias mais fechadas do mundo, com alíquotas tarifárias altas e uma teia de preferências para empresas nacionais. Liberais preferem países mais abertos e com menor proteção para as empresas nacionais.
Seria possível continuar por muito mais linhas de texto com as discrepâncias entre o que o Brasil é e o que seria um “modelo liberal” de país. Temas como a estrutura federativa supercomplexa de três níveis e a falta de clareza e transparência em relação aos recursos disponíveis e as atribuições das diversas esferas e partes dos governos, abrangendo todos os Poderes. A capacidade de entes subfederativos, como os Estados, de incorrerem em déficits e dívidas impagáveis e buscar socorro financeiro na União, com a cumplicidade do Judiciário. A dificuldade em executar garantias. O desempenho desastroso da produtividade nas últimas décadas. A má qualidade da educação, mesmo quando comparada com países de renda equivalente. Etc. etc.
Toda essa longa lista de características antiliberais da economia e das instituições brasileiras são traços entranhados da sociedade nacional, alguns remontando à Constituição de 1988 e ao período da redemocratização, mas muitos outros com raízes bem mais profundas, por vezes seculares. São um arcabouço institucional que espelha a ação histórica de poderosos grupos de interesse, que ainda estão ativíssimos na tarefa de defender suas vantagens.
Necessariamente, o trabalho de reformar a sociedade para trazê-la para mais perto do modelo liberal é lento, arrastado, penoso, cheio de idas e voltas, acertos e erros etc. Nesse sentido, interpretar a atual dificuldade de crescer da economia brasileira como mais um “fracasso da visão liberal” é uma ideia profundamente equivocada.
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