Editoriais / Opiniões
Rosa Weber assume STF em momento crítico
O Globo
Nova presidente da Corte tem de fugir de
polêmicas vazias sem se furtar à missão de proteger a Constituição
Foi prudente a decisão de Rosa Weber,
empossada ontem como nova presidente do Supremo Tribunal Federal (STF),
de evitar polêmicas levando a julgamento casos rumorosos nos próximos meses. A
meta é impedir que o STF seja tragado para o centro das atenções num período
eleitoral marcado pela polarização extremada e por repetidos ataques do
presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados. Por uma grata coincidência, coube
à ministra mais discreta da Corte o papel de chefiar o STF neste momento.
Rosa não gosta de dar entrevistas, nem de participar de palestras ou debates. Tem sido seu comportamento desde que assumiu o posto, em 2011. A cerimônia de posse, com a presença dos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi mais comedida que de costume, sem os tradicionais coquetel e jantar oferecidos a representantes da magistratura.
O histórico da nova presidente traz um
recado claro para aqueles que cometerem o erro de interpretar recato como
fraqueza. Assim como outros integrantes da mais alta Corte, Rosa tem sido
ferrenha defensora do Estado Democrático de Direito. Diante dos desafios, ela
tem sido contundente em seus posicionamentos.
É conhecida por votos técnicos e pela
fidelidade ao espírito colegiado mesmo quando entra em conflito com sua posição
individual. Como ministra, respeitou em todas as suas liminares as decisões da
Corte que autorizavam a prisão em segunda instância até o momento em que o
plenário reexaminou a questão — e ela votou contra.
Rosa negou ontem pedido da
Procuradoria-Geral da República (PGR) para arquivar três apurações contra
Bolsonaro baseadas no relatório da CPI da Covid (uma delas investiga a acusação
de prevaricação na compra da vacina indiana Covaxin). Na quinta-feira, ela dera
continuidade a um pedido de investigação feito por parlamentares de oposição
contra Bolsonaro pela disseminação de informações falsas sobre urnas
eletrônicas durante reunião com embaixadores em julho. No ano passado,
suspendeu trechos de decretos presidenciais que facilitavam a compra e o porte
de armas e determinou maior transparência na execução das emendas do relator.
Seu mandato como presidente será
interrompido prematuramente em outubro de 2023, quando se aposentará
compulsoriamente. Embora curta, a gestão de Rosa ocorrerá em período
extremamente sensível. O primeiro turno das eleições acontecerá em menos de
três semanas. O prédio do Supremo, que já foi alvo de bolsonaristas, tem sido
forçado a adotar esquema de segurança de nível máximo em determinas ocasiões.
Várias medidas para reforçar a segurança foram tomadas nos dois anos em que a
Corte foi chefiada pelo ministro Luiz Fux.
A gestão do agora ex-presidente foi marcada
pela eficiência. O STF tem hoje o menor acervo total de processos em tramitação
dos últimos 27 anos: 22.354, 21% menos que em 2020. Outro avanço foi a
transição para uma Corte 100% digital. Durante os piores momentos da pandemia,
o STF funcionou remotamente. Acima de tudo, Fux soube fazer uma defesa adequada
do Supremo, dos seus ministros e da Constituição diante dos desafios impostos
por um chefe do Executivo que inflamou seus seguidores contra a Corte.
Proliferação de armas em poder de amadores
torna Brasil mais inseguro
O Globo
Facilitar acesso aos CACs equivale a
facilitar acesso aos criminosos, revela reportagem do GLOBO
Dentre todas as medidas do governo Jair
Bolsonaro para facilitar posse e porte de armas, uma das mais
preocupantes é o incentivo à categoria dos colecionadores, atiradores e
colecionadores, identificados pela sigla CAC. Os registros de CACs no Exército
cresceram de 117 mil em 2018 para 674 mil em junho passado. Amadores adquiriram
o direito de comprar até 60 armas (inclusive as de maior calibre e letalidade)
e 180 mil cartuchos de munição por ano (antes o limite era de 16 armas e 40 mil
cartuchos). Pela estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o
arsenal em poder dos CACs cresceu de 350 mil armas para mais de 1 milhão.
Ao contrário do que sustentam os ideólogos
do bolsonarismo, essa multiplicação de armas pelo país tem contribuído para
gerar mais insegurança nas ruas. O principal motivo é que armas compradas pelos
CACs legalmente têm ido parar em mãos de criminosos com frequência assustadora.
Vários exemplos citados em reportagem
do GLOBO ilustram como a facilitação das armas significa, na prática,
facilitação do crime, em particular da modalidade apelidada “novo cangaço”, que
aterroriza cidades do interior.
Os casos se repetem por todo o país. Uma
onda de assaltos em Araçatuba, interior de São Paulo, contou com “apoio” de um
CAC que mantinha armas e até munição de uso proibido. Um fuzil cotado a R$ 50
mil no mercado ilegal foi comprado legalmente por R$ 14 mil por um CAC, que o
repassou aos responsáveis pelo roubo a uma transportadora gaúcha. Em
Pernambuco, um colecionador foi preso negociando uma bazuca com criminosos. Em
Natal, um atirador amador foi detido quando vendia um fuzil a um dos maiores
traficantes do Nordeste.
Outra brecha aberta pelas regras frouxas
adotadas para CACs tem permitido o drible numa das conquistas do Estatuto do
Desarmamento: a proibição ao porte de armas. Outra reportagem do GLOBO revela
as artimanhas usadas para justificar o porte brandindo o registro que dá
direito a transporte até estandes de treinamento (outra novidade deste
governo). Foram criados clubes de tiro de alcance nacional e outros com
funcionamento 24 horas, de modo a justificar a circulação de armas e munição em
qualquer momento e local. Surgiram
até aplicativos que permitem agendar aulas em tempo real para driblar
a fiscalização imprevista.
As consequências da permissividade têm sido
trágicas, como revela o caso de um empresário de São Paulo que atirou num
criminoso que já havia sido detido e rendido pela polícia. Casos assim
demonstram como a proliferação das armas em poder de amadores, tão incentivada
por Bolsonaro, significa um risco maior para a população que deseja apenas
viver em paz.
Na semana passada, uma liminar do Supremo
suspendeu três decretos que facilitam acesso a armas e munições, cujo
julgamento está paralisado por um pedido de vista do ministro Nunes Marques que
dura mais de um ano. Passou da hora de ele devolvê-los para que o plenário da
Corte enfim se pronuncie sobre a legalidade das medidas.
Balas de festim
Folha de S. Paulo
Plano dos militares para urnas soa mais
modesto do que delírios de Bolsonaro
Após meses de arreganhos, as Forças
Armadas parecem ter
assentado um plano para atuar na fiscalização das eleições —e
ele é muito mais modesto do que a fanfarronice de Jair Bolsonaro (PL) sugere.
A proposta dos militares é fotografar os
boletins impressos pelas urnas de algumas seções eleitorais no dia da votação e
compará-los com os documentos que serão disponibilizados pelo Tribunal Superior
Eleitoral no mesmo dia.
Na avaliação das Forças Armadas, uma
amostra diminuta de 385 urnas, correspondente a menos de 1% das que serão
usadas no primeiro turno, bastará para aferir a confiabilidade do sistema
oficial de totalização dos votos.
Além disso, duas sugestões para aprimorar
os testes de integridade das máquinas, habitualmente realizados no dia da
eleição, foram bem recebidas pela Justiça e poderão ser colocadas em prática em
caráter experimental.
Os boletins impressos pelas urnas mostram
os resultados de cada seção, reproduzindo as mesmas informações transmitidas ao
TSE, e são afixados há várias eleições nos próprios locais de votação, após seu
encerramento.
Neste ano, pela primeira vez, o TSE decidiu
divulgá-los imediatamente na internet também, facilitando o trabalho das
entidades habilitadas a fiscalizar o processo, entre as quais as Forças
Armadas.
O plano dos militares está longe de
representar uma contagem paralela dos votos ou qualquer coisa parecida. Ele
servirá apenas para verificar a solidez dos dados.
A transparência dos sistemas é tão grande
que permite inclusive que se fiscalizem os fiscais. Qualquer pessoa que tema
uma ação mal-intencionada dos militares poderá conferir os boletins na internet
e replicar o que eles fizerem.
As Forças Armadas pretendem escolher as 385
seções eleitorais em cidades onde deverão estar presentes para auxiliar na
segurança do pleito —o que obviamente não autorizará qualquer tentativa de
extrapolação dos resultados da amostra para o cômputo nacional.
Só falta combinar com Bolsonaro, que não se cansa
de alimentar suspeitas infundadas sobre as urnas. Mesmo quando
finge não fazê-lo, ele sempre deixa a porta aberta para contestar os resultados
se lhe forem desfavoráveis.
Em entrevista na semana passada, por
exemplo, disse que é impossível garantir que as urnas estarão imunes a fraudes,
mesmo se as sugestões das Forças Armadas forem acolhidas pela Justiça
Eleitoral.
Como é óbvio desde o início da ofensiva, o
único objetivo é criar confusão, na esperança de encontrar no tumulto uma saída
desesperada em caso de derrota. Se os militares quiserem participar da
pantomima, será por sua conta e risco.
Surpresa de Kiev
Folha de S. Paulo
Ataque ucraniano altera dinâmica da guerra,
mas é cedo para falar em uma virada
Em fins de julho, ataques coordenados com
artilharia de precisão americana por parte das Forças Armadas da Ucrânia
anunciaram, pode-se dizer, o início da terceira grande fase da guerra iniciada
pela Rússia de Vladimir Putin.
Kiev buscaria reconquistar parte da
província sulista de Kherson, vital para os ocupantes russos por integrar o
corredor terrestre que liga o leste russófono do país, que já estava em mãos
pró-Kremlin desde 2014 com a Crimeia.
Durante cinco semanas, a ofensiva não
decolou, mas atraiu grandes reforços russos. Quando foi enfim lançada,
enfrentou muitas dificuldades para romper as defesas estabelecidas por Moscou
na área.
O que nem russos nem analistas militares
esperavam ocorreu na primeira semana de setembro: a abertura de
uma segunda contraofensiva, desta vez na região nordeste da Ucrânia,
na província de Kharkiv —que, com exceção da capital e da porção oeste,
encontrava-se ocupada desde abril.
Ali, o exército invasor estava menos
guarnecido devido aos reforços enviados ao sul, e o resultado foi uma
estrondosa vitória para Kiev —que retomou quase todo o território, no seu mais
bem-sucedido ataque em seis meses de guerra.
Antes, na primeira etapa do conflito, a
Rússia fracassou em dobrar o governo de Volodimir Zelenski com uma investida
tão ambiciosa quanto mal planejada. Foi mais uma derrota tática para si própria
do que um triunfo ucraniano.
Putin teve de deixar as áreas em torno de
Kiev, norte e nordeste do país, porém manteve seus ganhos no sul e iniciou uma
fase centrada no Donbass, o leste russófono. Ali vem colhendo bons resultados,
mesmo que lentamente.
Agora, o novo capítulo do embate se dá sob
o signo da surpresa de setembro de Kiev. Cabe, contudo, cautela: os russos
fugiram para leste, deixando áreas sem resistência, e poderão se reagrupar.
Nesta segunda-feira (12), retomaram a
rotina de bombardeio punitivo a civis, deixando a cidade de Kharkiv, a segunda
mais populosa da Ucrânia, no escuro e sem água.
Não é certa a capacidade de Zelenski de
defender áreas reconquistadas tão rapidamente a tempo de evitar um
contra-ataque com eficiência, e ainda é cedo para dizer que as perdas russas
indicam uma virada maior no tabuleiro militar.
Isso dito, a dinâmica de uma guerra que se
desenha arrastada está sendo redefinida, e pela primeira vez por iniciativa de
Kiev.
‘Voto útil’ para quem?
O Estado de S. Paulo
Lula defende que eleitores de outros candidatos votem nele para derrotar Bolsonaro no 1.º turno; esse voto é ‘útil’ para o petista, mas não é necessariamente bom para a sociedade
O candidato Lula da Silva não quer apenas
ganhar a eleição em outubro; ele quer ser eleito no primeiro turno, o que seria
uma façanha inédita para o PT após mais de 30 anos de disputas pela
Presidência. Nos últimos dias, aumentou a pressão da campanha de Lula pelo
chamado “voto útil”. A questão é: o “voto útil” no petista, já no primeiro
turno, é útil para quem, afinal? Para Lula, obviamente, é. No entanto, para o
conjunto da sociedade, esse desfecho não é necessariamente bom.
O “voto útil” é aquele que o eleitor
escolhe dar, no primeiro turno, não a seu candidato preferido, mas àquele que é
visto como mais capaz de derrotar o candidato que esse eleitor repudia. Assim,
o “voto útil” aceleraria a derrota do candidato indesejado, impedindo-o de
chegar ao segundo turno. Considerando-se que o segundo turno é uma outra
eleição, em que há apenas dois postulantes em condições praticamente iguais de
disputa, é possível que muitos eleitores escolham evitar que o candidato que
repudiam tenha essa chance de vencer.
Trata-se de um raciocínio válido, é claro –
afinal, o eleitor é livre para estabelecer suas prioridades na hora de votar. O
problema é que esse “voto útil” entra no balaio de votos do candidato vencedor
como se fosse um aval às suas propostas de governo, e isso não é
necessariamente verdadeiro. Aliás, é provavelmente falso, uma vez que o “voto
útil” em geral é dado não pelo que o candidato propõe, mas exclusivamente por
sua capacidade de derrotar o oponente que o eleitor não quer ver na
Presidência. Vota-se, portanto, no “mal menor” – que, malgrado seja “menor”,
não deixa de ser “mal”.
Ademais, e isso talvez seja o mais
importante, o eleitor que vota no primeiro turno como se estivesse no segundo,
ou seja, antecipando uma escolha que não precisa ser feita neste momento,
desperdiça o voto que poderia servir para robustecer a oposição. Isso é crucial
numa democracia: o candidato derrotado é tão relevante quanto o que vence, pois
é do derrotado que se espera o exercício da oposição. Sem oposição forte, o
governo se sente à vontade para governar somente para aqueles que o elegeram, e
não para o conjunto da sociedade. Quanto mais votos essa oposição tiver, mais a
sociedade ganha.
Por fim, é uma grosseira falácia atribuir a
Lula da Silva a missão de “salvar a democracia”, isto é, impedir a reeleição do
presidente Jair Bolsonaro, que representaria uma suposta ameaça às liberdades
democráticas e à estabilidade do País. Ora, se a democracia depende de Lula da
Silva para ser “salva”, estamos mal – afinal, como pode alguém se dizer
salvador da democracia e ao mesmo tempo manifestar admiração por ditadores
latino-americanos, tratando-os carinhosamente como “companheiros”?
O objetivo de Lula com essa campanha pelo
voto útil é “liquidar a fatura”, como dizem seus apoiadores, já no próximo dia
2. Recentes pesquisas de intenção de voto têm mostrado que a distância que
separa o petista de Bolsonaro não é mais tão confortável como há alguns meses.
Mas uma coisa é a tática eleitoral de Lula; outra, muito diferente, é o
interesse da sociedade.
Recentemente, Lula afirmou no Twitter que
ele “não tem por que ter vergonha de ganhar no primeiro turno”, afinal, “se
quem tem 5% (de intenções de voto) sonha em ter 40%, por que quem tem mais de
40% não pode sonhar em ter mais um pouquinho e ganhar no primeiro turno?”.
Lula pode sonhar com o que quiser. A bem da
verdade, qualquer candidato a cargo majoritário deve almejar ser eleito no
primeiro turno. É um truísmo. O ponto é que a Constituição não prevê eleições
majoritárias em dois turnos por acaso. Trata-se de um sistema que visa ao
amadurecimento democrático, evitando escolhas plebiscitárias a priori.
Neste ano, não há apenas dois, há dez
candidatos à Presidência. E nenhum deles tem um voto sequer antes da abertura
das urnas. Pesquisas de intenção de voto aferem nada além disso – a intenção
dos eleitores num dado momento. Fossem atestados fiéis da vontade da maioria,
nem precisaria haver eleições, bastaria encomendar pesquisas. É tempo de
reflexão, e não de pressa.
O inaceitável desperdício de alimentos
O Estado de S. Paulo
Enquanto milhões de pessoas passam fome no Brasil e no mundo, 1/3 dos alimentos produzidos no planeta se perde ou vai parar na lata do lixo, estima consultoria internacional
Em tempos de crescente fome e insegurança
alimentar no Brasil e no mundo, é perturbadora a estimativa de que um terço dos
alimentos anualmente produzidos no planeta se perde ou é desperdiçado. O dado
foi divulgado pelo Boston Consulting Group, consultoria internacional que prevê
o agravamento do problema nos próximos anos. A projeção é que o mundo chegará a
2030 deixando de aproveitar 2,1 bilhões de toneladas de alimentos por ano, o
que significa dizer que tamanha quantidade de carnes e vegetais de todo tipo
vai simplesmente apodrecer ou ser jogada fora, em vez de alimentar a população
global.
Impossível não pensar em outra estimativa,
tão ou mais assustadora, recentemente divulgada pela Organização das Nações
Unidas (ONU): até 828 milhões de pessoas, quase 10% da população mundial,
enfrentaram privação alimentar no ano passado, ou seja, passaram fome. A
situação agravou-se em decorrência da pandemia de covid-19 e, atualmente, sofre
também os efeitos da guerra na Ucrânia. Vale lembrar que outros 2,3 bilhões de
pessoas (29,3% da população global), conforme a ONU, viviam a chamada
insegurança alimentar, isto é, tinham que lidar com incertezas a respeito de
sua capacidade de obter comida, o que é sinônimo de redução da quantidade e da
qualidade dos alimentos ingeridos.
É nesse cenário que as projeções do Boston
Consulting Group se tornam ainda mais aterradoras. Para ter ideia do que
representam 2,1 bilhões de toneladas de alimentos − a quantidade que deverá ser
perdida em 2030, no mundo −, basta dizer que toda a produção de grãos no
Brasil, na atual safra, deve chegar a 271 milhões de toneladas ou 13% disso. A
consultoria estima também que o prejuízo financeiro atingirá US$ 1,5 trilhão em
2030. De novo, a título de comparação, vale registrar que tal cifra corresponde
a quase todo o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil.
Não resta dúvida de que a diminuição das
perdas e do desperdício de alimentos envolve uma questão humanitária. É
assombroso, para dizer o mínimo, pensar que milhões de pessoas estão passando
fome neste exato instante, enquanto toneladas de comida se perdem pelo caminho
− ou vão parar no lixo. Há também uma série de questões econômicas, logísticas,
ambientais e de hábitos de consumo sobre as quais o Boston Consulting Group se
debruçou, e para as quais há soluções ou recomendações que vale a pena
conhecer.
A consultoria faz uma clara distinção entre
perdas de alimentos e desperdício, e estima que aproximadamente metade da
comida descartada é de frutas e legumes. A cadeia produtiva da maçã é citada
como exemplo: para cada 10 milhões de maçãs, segundo a consultoria, 13% se
perdem no próprio processo de produção; 6%, no armazenamento, manuseio e
transporte; 1%, no processamento e embalagem; 6%, na distribuição e no varejo;
e 8% delas são desperdiçadas pelos consumidores finais, totalizando 34% de perdas.
Em resumo, de cada 10 milhões de maçãs, 3,4 milhões ficam pelo caminho ou são
jogadas no lixo.
O estudo destaca que é possível reduzir
esses índices, a ponto de cortar o prejuízo financeiro quase pela metade, o que
permitiria economizar US$ 700 bilhões ao ano, como mostrou recente reportagem
do Valor. A mobilização nesse sentido precisa envolver governos,
produtores rurais, empresas, consumidores e a sociedade em geral. Há muito a
ser feito, seja do ponto de vista macro ou micro. Na Amazônia, por exemplo, o
relatório estima que 3% dos peixes acabam sendo descartados por causa de
deficiências no transporte. Colheitas prematuras também geram perdas, assim
como o estímulo para que clientes em bufês se sirvam de porções maiores do que
realmente vão comer.
Uma das recomendações é justamente aumentar
a conscientização dos consumidores, assim como criar mecanismos regulatórios ou
fiscais para desencorajar perdas e desperdícios. Enfim, a lista é longa − e é
preciso agir com rapidez. Como dizia o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho,
quem tem fome tem pressa. É inaceitável que o mundo abra mão dos alimentos que
produz em meio a tanta gente que não tem o que comer.
A contraofensiva ucraniana
O Estado de S. Paulo
Se é possível vislumbrar o fim da guerra, ele ainda está distante, e a humilhação de Putin desencadeia novos riscos
Nos últimos dias, uma contraofensiva há
muito esperada, mas ainda assim surpreendente, sinaliza que a Ucrânia pode
estar mudando a maré da guerra.
Por semanas os ucranianos têm combatido
intensamente no sul, obrigando os russos a enviarem reforços, enquanto no leste
se mantinha uma guerra de atrito. Mas, em poucos dias, um ataque surpresa dos
ucranianos no leste conseguiu recuperar oficialmente 3 mil km² – algumas
estimativas sugerem 8 mil km², mais do que a Rússia conquistou em meses.
É o momento mais importante do conflito
desde que os russos foram obrigados a uma retirada humilhante no norte, em
abril, após suas incursões nos arredores de Kiev. Desde então, a Rússia
asseverava que seu objetivo era dominar os territórios de Luhansk e Donetsk, no
leste. Mas as recentes conquistas ucranianas praticamente inviabilizaram essa
meta.
A pressão ucraniana no sul, combinada com a
contraofensiva no leste, impõe à Rússia um dilema. A prudência exigiria enviar
tropas a Luhansk para assegurar uma linha defensiva. Mas isso implicaria
vulnerar posições em Kherson e Donetsk. A campanha ucraniana parece projetada
para pressionar o presidente russo, Vladimir Putin, com tal dilema, e tirar
proveito disso.
A retirada caótica dos russos sugere um
moral baixo, esgotamento de recursos e confusão na liderança militar. Ao mesmo
tempo, o sucesso ucraniano mostra que a cooperação com os serviços de
inteligência ocidentais e o emprego de armas como os mísseis de longa distância
americanos estão produzindo os efeitos desejados.
A contraofensiva permite pela primeira vez
vislumbrar o fim da guerra. Mas esse desfecho ainda está distante. Os russos
têm condições de reagrupar as forças em uma linha de defesa no nordeste e
conduzir contra-ataques. Além disso, a pressão sobre Putin implica riscos para
os quais é preciso estar alerta.
Já estão circulando críticas severas de
ultranacionalistas russos que desejavam uma ação mais agressiva. Como sempre na
história da Rússia, Putin conta com o inverno. Ele pode cortar ainda mais os
suprimentos de energia para a Europa, na expectativa de provocar tumultos
sociais e pressionar aqueles que apoiam a Ucrânia. Além disso, desde o
princípio ele advertiu que poderia empregar armas químicas e nucleares. Isso
poderia infectar o território russo e mesmo territórios da Otan.
Os líderes ocidentais, especialmente
europeus, precisam deixar claro que quaisquer manobras nesse sentido
transformarão Putin incondicionalmente em um pária. Além de mais armas para os
ucranianos, eles precisam acelerar seus planos de contingência para abastecer
reservas de energia, distribuir ajuda à população atemorizada com a escalada do
custo de vida e investir em comunicação pública para esclarecer a essa
população que os sacrifícios valem a pena. Uma vitória de Putin convidaria a
novas agressões na Europa.
Os riscos são altos. Mas, pelo momento,
após um ano sombrio, as imagens da debandada dos soldados russos e dos abraços
dos ucranianos libertados devem ser tomadas por aquilo que são: ótimas
notícias.
Sem desculpas para o péssimo resultado do Brasil no IDH
Valor Econômico
As sérias falhas do governo Bolsonaro no
enfrentamento da pandemia são a principal explicação para a queda do IDH
Quando foi divulgado pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) o Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) do Brasil referente a 2019, a Casa Civil de Jair Bolsonaro, então
chefiada por Onyx Lorenzoni, apressou-se em atribuir aos “governos petistas” do
passado o número, que é calculado a partir dos indicadores de saúde,
escolaridade e renda da população.
Quatro anos depois é impossível usar a
mesma desculpa para explicar o péssimo resultado do IDH que, em 2021, caiu pelo
segundo ano consecutivo e ficou em 0,754, o menor patamar desde 2015. Com esse
desempenho, o Brasil ficou em 87º lugar entre 191 países do mundo todo
acompanhados pelo Pnud, e em 16º na América Latina, bloco liderado pelo Chile,
atrás da Argentina, Cuba, México e Peru.
É verdade que o IDH caiu nos últimos dois
anos no mundo todo, mas menos do que no Brasil. A pandemia do novo coronavírus
teve efeito fulminante nos indicadores globais de saúde, sendo a expectativa de
vida um dos pilares do IDH. A expectativa de vida do brasileiro ao nascer caiu
de 75,3 anos no primeiro ano do governo Bolsonaro para 72,8 anos em 2021, ou
seja, diminuiu em 2,5 anos e voltou ao menor nível em 12 anos. Na média global,
a expectativa de vida foi reduzida menos, em 1,6 ano.
As falhas do governo Bolsonaro no
enfrentamento da pandemia são a principal explicação para a queda do IDH
brasileiro. O governo resistiu à compra de vacinas e só agiu após pressão da
sociedade e dos governadores. O próprio presidente pôs em dúvida a seriedade da
pandemia ao compará-la a uma “gripezinha”, e a eficiência das vacinas, embora
agora alardeie na campanha eleitoral quantos imunizantes adquiriu. Criticou e
ainda o faz em campanha as medidas de isolamento social. O governo federal foi
omisso e negligente, deixando para Estados e municípios a organização da
vacinação e do tratamento dos infectados, falhando nos casos em que precisou
intervir, como na crise em Manaus.
O país contabiliza quase 700 mil mortos em
consequência da covid-19, o segundo maior número oficial de mortos na pandemia,
depois dos Estados Unidos que, ainda assim, ficou em 21º lugar no IDH de 2021,
com o índice de 0,92. Com a rede hospitalar concentrada em atender os atingidos
pela covid-19, outras doenças foram negligenciadas, contribuindo para elevar o
número de mortos. Todo o calendário vacinal está agora em risco.
Outro indicador que compõe o cálculo do IDH
é a renda da população que, em termos nominais, ficou estável, segundo o Pnud,
embora 8,3% abaixo do pico da série histórica, atingido em 2013. A evolução do
PIB per capita ilustra melhor o problema. Em 2021, o PIB teve crescimento de
4,6%, compensando a queda de 3,9% do primeiro ano da pandemia. Mas o PIB per
capita aumentou 3,9% no ano passado, percentual insuficiente para anular a
perda de 4,6% de 2020.
O Pnud também enfoca a questão do ponto de
vista da distribuição de renda. Nesse caso, o IDH brasileiro despenca 20
posições, caindo nada menos do que 23,6%, de 0,754 para 0,576. Na questão de
gênero, os números são piores. A expectativa de vida das mulheres é 6,4 anos
menor do que dos homens; e a renda média anual cai pela metade, sendo US$ 7 mil
menor.
O terceiro pilar do IDH é a educação, área
entregue a ministros igualmente omissos e voltados para questões desimportantes
como o homeschooling. O Pnud trabalha com a expectativa de que o brasileiro
terá 8,1 anos de estudo, mas as informações estão defasadas.
Indicação de como o governo põe a educação em plano secundário é o tratamento da área dentro do Orçamento do próximo ano. A ONG Todos pela Educação alertou que o projeto orçamentário retira quase R$ 1 bilhão dos recursos destinados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que cobre despesas de diversas unidades orçamentárias do Ministério da Educação (MEC), incluindo a administração direta da pasta e instituições de ensino federais, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o programa de pós-graduação Capes e o FNDE. O Ministério da Educação foi o mais contemplado com despesas discricionárias, que podem ser cortadas e manejadas. A pasta tem previstos aproximadamente R$ 20,6 bilhões em despesas discricionárias do total de R$ 98,9 bilhões previstos pelo Executivo para o ano que vem. Isso mostra a escassa disposição do governo de melhorar os indicadores de desenvolvimento humano do país.
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