O Estado de S. Paulo
Na interação entre o ‘interno’ e o
‘externo’, é relevante que o novo governo tenha sensibilidade para ampliar sua
validação.
O legado da política externa do governo
Bolsonaro é muito negativo. Isolou o Brasil no mundo; dilapidou o capital
diplomático do País; diminuiu o potencial de articulação com nossos grandes
parceiros; comprometeu nossa ação nas instâncias multilaterais que sempre foram
histórico ativo do País.
O governo Bolsonaro não soube traduzir
objetiva e apropriadamente necessidades internas em possibilidades externas – a
tarefa da política externa como política pública.
É consensual esta avaliação entre analistas da diplomacia brasileira. Foi significativo que personalidades que exerceram responsabilidades nas relações internacionais em diferentes governos e com distintas trajetórias e opiniões políticas tenham se manifestado sobre a matéria. Publicamos juntos neste jornal, em 8 de maio de 2020, artigo sobre a necessidade da reconstrução da política externa, assinado por Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Francisco Rezek, José Serra, Rubens Ricupero, Hussein Kalout e por mim (A reconstrução da política externa brasileira, pág. A7).
O texto antecipou uma abrangente coligação
de apoios, que foi além do PT e contribuiu de maneira relevante para a eleição
de Lula no segundo turno.
Recuperar a presença do Brasil no mundo e
na nossa região será uma tarefa da terceira presidência Lula. É um dos seus
explícitos propósitos, reiterado no seu discurso logo após as urnas terem
consagrado sua vitória. Ela será facilitada pela expressiva percepção do que
ele representa para interlocutores internacionais e do que isso significa para
a renovada presença do Brasil no mundo. A abrangente repercussão de sua eleição
no plano internacional é um nítido contraponto ao negativo legado da
presidência Bolsonaro.
Lula já antecipou uma mudança de rumo na
área ambiental, no plano interno e internacional, que tem o respaldo do apoio
de Marina Silva e nos compromissos que assumiu nesta matéria. Representa a
prioridade que deverá conferir a um dos mais urgentes temas da pauta
internacional. Trará a recuperação da liderança brasileira neste campo, e conta
com um acervo positivo de realizações e conhecimentos cujo ponto de partida foi
a Rio-92. Tem o lastro que provém do fato de que nenhum dos grandes problemas
da pauta ambiental – da mudança climática à preservação da biodiversidade –
pode ser apropriadamente equacionado sem uma construtiva atuação do Brasil. Daí
a importância atribuída à sua presença e à sua palavra na COP-27.
A nova política externa de Lula tem o
capital diplomático e político acumulado nas suas presidências anteriores.
Precisará, no entanto, fazer ajustes e reavaliações em relação ao passado,
tanto por razões externas quanto internas.
O cenário internacional está permeado por
tensões e incertezas distintas das que enfrentou antes. Destaco a crescente
relevância na competição Estados Unidos/China por hegemonia e seus
desdobramentos na distribuição geopolítica do poder. É o que faz da dinâmica
instável de suas relações bilaterais um componente de primeira grandeza no
contexto internacional, que também tem incidência na América do Sul com repercussão
em nossa inserção regional.
Menciono a guerra na Ucrânia e seus
efeitos, que vão muito além das partes diretamente envolvidas no conflito. O
uso unilateral da força pela Rússia de Vladimir Putin representa uma ruptura
com o padrão do aceitável pelas normas internacionais, proibitivas de guerras
de conquista e preservadoras da integridade territorial dos Estados. Trata-se
de conduta que coloca em questão uma grande regra de equilíbrio político do
sistema internacional, consagrado na Carta da ONU à luz da
experiência que antecedeu e instigou a 2.ª Guerra Mundial. Ela é magnificada
pelo fato de a Rússia ser potência nuclear e membro permanente do Conselho de
Segurança.
Daí a significativa ampliação das tensões
de segurança no plano internacional, os seus impactos no plano energético e as
alterações nas cadeias globais de bens e serviços. A crise ucraniana atinge a
dinâmica da política e da economia mundial e seus efeitos diretos e indiretos
nos alcançam, ainda que com menor intensidade do que outras regiões.
Realço a erosão do sistema multilateral do
comércio da OMC e de suas regras, num contexto muito distinto daquele com o
qual me confrontei como chanceler de Fernando Henrique Cardoso e Celso Amorim
como chanceler de Lula.
No plano interno, a eleição de Lula foi
fruto de uma coligação de abrangente apoio, diferente da que caracterizou o
exclusivismo petista de suas anteriores vitórias e suas correspondentes
inclinações diplomáticas. O momento atual é distinto. Por isso, na interação
entre o interno e o externo, é relevante que tenha sensibilidade
para ampliar sua validação, ou seja, venha a fazer, sem a perda de identidade,
da sua política externa igualmente um componente da sua governança que
contribua para sua legitimação num país que as eleições de 2022 revelaram muito
dividido e polarizado.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
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