domingo, 20 de novembro de 2022

Muniz Sodré* - Nervos à flor do pano

Folha de S. Paulo

Mercado de puros valores tem olhos fechados ao território, à gente viva

"Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos" (1988), conhecido filme de Pedro Almodóvar, não tem nada a ver com economia, mas esse título assenta bem à entidade entre nós denominada "mercado". É que, emocionado, Lula disse ser o combate à fome mais importante do que estabilidade fiscal. Não disse que são incompatíveis, foi um desabafo. "Em modo de campanha", ponderou uma voz experiente. Mas num tremelique, o mercado jogou para baixo o Ibovespa e, para cima, o dólar. Um ataque de nervos de quem certamente esperava outra coisa.

A economia de mercado, mecanismo autorregulável que ordena a produção e a distribuição dos bens, vive de expectativas. A primeira é de que os seres humanos se comportem de modo a atingir o máximo de ganhos monetários. Dinheiro é uma voragem atrativa. Depois, o domínio da sociedade pelo mercado, esquecido da evidência histórica de que a economia do homem está submersa em suas relações sociais. Disso bem sabe Lula: o mercado pode querer uma coisa, e a sociedade, outra.

Na verdade, são vários os mercados. Também os empresários-produtores cultivam expectativas, geralmente expressas na otimização de recursos e na integração social. Já os agentes de um mercado muito especial, o financeiro, vivem de larga imaginação. Seus atos são comandados pelo retorno com que devaneiam ao comprar papéis.

Nada contra o devaneio, bem o sabem os artistas. Mas enquanto na arte esse é o caminho para ver outra forma de realidade, é impossível ver alguma coisa quando a imaginação está colocada noutro lugar, ou seja, no vórtice do dinheiro. Por isso, o mercado de puros valores, abstratos frente à produção, tem olhos fechados ao território, à gente viva.

Indaga-se, entretanto, como pode essa entidade ser tão suscetível às agitações convulsivas de um momento. Ela tem seu lado estável: um grupo com super-ricos no topo e, abaixo, narradores imaginosos, amadores e profissionais, que alimentam a ficcionalização indispensável à geração de expectativas. Disso uma ilustração popular seria o mamulengo nordestino, em que um titereiro movimenta fantoches, na expectativa de reação do público. Se o enredo fica tenso, os bonecos exibem nervos à flor do pano.

Mas no teatro dos bilhões improdutivos, mortos, a mera afirmação de uma política de vida provoca tique-tique espasmódico, pois se vive a nervo de guerra exposto, como na personagem de Almodóvar. A fala do presidente eleito em nenhum instante exclui responsabilidade fiscal. Mas inclui um povo empobrecido, já saturado de economês do tipo "teto", "âncora", senão de retórica embalsamada "em modo de governo". É povo que anseia por emprego e comida, mesmo com o treme-treme dos bem nutridos.

 

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".

 

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