Folha de S. Paulo
Mercado de puros valores tem olhos fechados
ao território, à gente viva
"Mulheres à Beira de um Ataque de
Nervos" (1988), conhecido filme de Pedro Almodóvar, não tem nada a ver com
economia, mas esse título assenta bem à entidade entre nós denominada
"mercado". É que, emocionado, Lula disse ser o combate à fome mais
importante do que estabilidade fiscal. Não disse que são incompatíveis, foi um
desabafo. "Em modo de campanha", ponderou uma voz experiente. Mas num
tremelique, o mercado jogou para baixo o Ibovespa e, para cima, o dólar. Um ataque de nervos de quem certamente esperava outra
coisa.
A economia de mercado, mecanismo autorregulável que ordena a produção e a distribuição dos bens, vive de expectativas. A primeira é de que os seres humanos se comportem de modo a atingir o máximo de ganhos monetários. Dinheiro é uma voragem atrativa. Depois, o domínio da sociedade pelo mercado, esquecido da evidência histórica de que a economia do homem está submersa em suas relações sociais. Disso bem sabe Lula: o mercado pode querer uma coisa, e a sociedade, outra.
Na verdade, são vários os mercados. Também
os empresários-produtores cultivam expectativas, geralmente expressas na
otimização de recursos e na integração social. Já os agentes de um mercado
muito especial, o financeiro, vivem de larga imaginação. Seus atos são
comandados pelo retorno com que devaneiam ao comprar papéis.
Nada contra o devaneio, bem o sabem os
artistas. Mas enquanto na arte esse é o caminho para ver outra forma de
realidade, é impossível ver alguma coisa quando a imaginação está colocada
noutro lugar, ou seja, no vórtice do dinheiro. Por isso, o mercado de puros
valores, abstratos frente à produção, tem olhos fechados ao território, à gente
viva.
Indaga-se, entretanto, como pode essa
entidade ser tão suscetível às agitações convulsivas de um momento. Ela tem seu
lado estável: um grupo com super-ricos no topo e, abaixo, narradores
imaginosos, amadores e profissionais, que alimentam a ficcionalização
indispensável à geração de expectativas. Disso uma ilustração popular seria o
mamulengo nordestino, em que um titereiro movimenta fantoches, na expectativa
de reação do público. Se o enredo fica tenso, os bonecos exibem nervos à flor
do pano.
Mas no teatro dos bilhões improdutivos,
mortos, a mera afirmação de uma política de vida provoca tique-tique
espasmódico, pois se vive a nervo de guerra exposto, como na personagem de
Almodóvar. A fala do presidente eleito em nenhum instante exclui
responsabilidade fiscal. Mas inclui um povo empobrecido, já saturado de
economês do tipo "teto", "âncora", senão de retórica
embalsamada "em modo de governo". É povo que anseia por emprego e comida, mesmo com o treme-treme
dos bem nutridos.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar
Nagô".
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