terça-feira, 8 de novembro de 2022

Pedro Cafardo - ‘Herança Ipiranga’ vai dar muito trabalho

Valor Econômico

Escolhas de Lula, especialmente na economia, vão determinar se grande união de forças democráticas e pessoas de bem em todo o país vai seguir junta em seu governo

Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente e vai tomar posse para o seu terceiro mandato. Ele só conseguiu superar o bolsonarismo em razão de uma grande união de forças democráticas e pessoas de bem em todo o país, com esmagadora votação no Nordeste.

Agora, a pergunta número um, inevitável, é: essa união vai continuar a partir de 1º de janeiro ou os novos aliados voltarão para seus cantos e retomarão a oposição feroz ao governo de centro-esquerda, como ocorreu nos mandatos anteriores de Lula e Dilma?

A resposta é “depende”. Depende da política a ser adotada, principalmente na economia. Nessa turma que apoiou Lula tem de tudo em matéria de pensamento econômico, variando de heterodoxos/progressistas a radicais ortodoxos/liberais. Essas duas correntes se uniram para derrotar o presidente Jair Bolsonaro, num movimento saudável para a democracia.

No início de 2022, sob o título “Um ano para incendiar corações e mentes”, esta coluna observava que o eleitor teria que escolher entre duas tendências no pleito presidencial. Uma, a dos liberais, é baseada na crença de que a prosperidade de uma nação decorre da liberdade do empreendedor para investir e trabalhar, sem muita interferência do Estado, a não ser como regulador. A ideia é que, com o equilíbrio fiscal do governo, no longo prazo, os agentes econômicos tomam decisões de investir no país e promovem crescimento de economia, emprego e renda.

A proposta dos progressistas, mais ligados a Lula, inclui maior intervenção do Estado, com tarefa importante no planejamento dos investimentos e na administração da demanda de bens no país, para que a economia trabalhe sempre próxima do pleno emprego. Sem abrir mão da responsabilidade fiscal, caberia ao Estado tirar recursos da economia em momentos de aquecimento e injetá-los em tempos recessivos. Além disso, deveria adotar responsabilidade social, com programas de renda, educação e saúde.

As duas turmas tiveram que deixar de lado suas divergências para apoiar a democracia contra o autoritarismo. Lula sabia que para ganhar a eleição teria de dar voz aos apoiadores liberais e o fez desde a escolha do vice Geraldo Alckmin até a atração de outros representantes do centro político no fim da campanha. Isso o aproximou da Faria Lima e dos pais do Real, economistas que derrotaram a hiperinflação há quase 30 anos. Num dos últimos eventos públicos da campanha, no Tuca, em São Paulo, o então candidato do PT escalou apenas dois financistas para discursar, ambos liberais: Persio Arida e Henrique Meirelles. Aquilo foi um “sinal importante sobre a direção da política econômica”, observou Meirelles em entrevista ao Valor.

Pergunta número dois: será possível reunir essa gente que pensa diferentemente para trabalhar em harmonia no novo governo?

Não é uma tarefa fácil, mas talvez Lula consiga fazer a mágica, algo que já ocorreu no Brasil no século passado. No excelente livro “O Brasil Desenvolvimentista e a Trajetória de Rômulo Almeida”, já citado nesta coluna em 28/6/22, o professor Alexandre de Freitas Barbosa (IEB-USP) conta a experiência dos anos 1950, quando intelectuais orgânicos do Estado, de tendências diferentes, trabalharam como parceiros no planejamento econômico e social. De um lado, estavam desenvolvimentistas “stricto sensu”, como Rômulo Almeida, Ignácio Rangel, Jesus Soares Pereira e Cleantho de Paiva Leite. E de outro, os desenvolvimentistas “mercadistas”, como Roberto Campos, Lucas Lopes e Glycon de Paiva. O sucesso foi indiscutível: de 1950 a 1973, os chamados “anos dourados” da economia, a renda per capita brasileira cresceu 134%.

Essa experiência mostra que não há incompatibilidade total entre as duas tendências, até porque ambas visam o desenvolvimento e defendem a responsabilidade fiscal, ainda que as ênfases sejam diferentes.

Os radicalismos, de um lado ou de outro, podem estar atenuados até por constatações da história recente. O neoliberalismo, forma radical da proposta liberal, foi hegemônico no Ocidente desde os anos 1980, adotado por Ronald Reagan nos EUA e Margareth Thatcher no Reino Unido. Com austeridade fiscal rigorosa, privatizações desenfreadas e Estado mínimo, não teve os resultados esperados, porque a economia desses países cresceu muito menos que no período do capitalismo social, do pós-guerra até meados dos anos 1970. Além de colaborar para a ascensão da China à condição de potência global, a proposta neoliberal provocou seguidas crises financeiras, promoveu concentração de renda e culminou com o grande colapso do “subprime”, nos EUA, em 2008.

As experiências progressistas radicais também tropeçaram. Durante a pandemia, por exemplo, governos de todo o mundo avançaram sem receios na aplicação de trilhões de dólares de recursos públicos na economia. Eles não tinham alternativa. Foram bem-sucedidos para ativar a economia, mas agora enfrentam sérios problemas para a contenção da inflação e são obrigados a elevar juros e aumentar o endividamento público. No Brasil, o experimento pouco cuidadoso com a questão fiscal deu no que deu durante o governo Dilma Rousseff. Não adianta discutir se foi golpe ou não. O fato é que a gestão fiscal era errática e criou o pretexto para o impeachment.

Uma diferença entre as duas correntes está na forma como almejam o desenvolvimento ao longo do tempo. Uma acredita que o Estado mínimo e a austeridade, entre outras qualidades, podem criar ambiente favorável e promover o crescimento no médio e longo prazo. Outra, mais imediatista, acha que a mão pesada do Estado precisa apressar o desenvolvimento porque a rigor, como disse Keynes, “a longo prazo estaremos todos mortos”.

Dado que geralmente “virtus in medium est”, talvez Lula possa conseguir o apoio dos dois lados, com a volta do planejamento, investimento e financiamento público para puxar o privado, parcerias com o setor empresarial, reformas administrativa e tributária e responsabilidades fiscal, social e ambiental. Vai depender de engenho e arte na escolha de nomes e no comando das ações do governo.

Seja como for, o país dará adeus ao falso liberalismo de Paulo Guedes, que só ficou no papel, primou pelo “desplanejamento”, promoveu descalabro fiscal e deixará uma nefasta “Herança Ipiranga” para ser administrada pelo novo governo. Já vai tarde.

 

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