quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Wilson Gomes* - Ajudem o Jair a comprar seu caviar

Folha de S. Paulo

A igreja ficar rica ou ex-presidente ter mais mansões é consequência, o importante é que o ato distingue minha crença

No país do homem cordial, a compaixão por quem padece suscita muito menos generosidade do que pareceria normal.

De fato, esse é um país muito difícil para as organizações que pedem ajuda humanitária para instituições que cuidam dos que sofrem e dos desvalidos. A explicação para tanto é a "fadiga de compaixão", pois até de misericórdia se cansa quando ela é exigida com tanta constância.

Em um país de tantas misérias, endurecer o coração pode ser forma de sobrevivência.

O que não é de fácil entendimento é o desprendimento com que os brasileiros comuns têm metido a mão no bolso para ir em socorro de seus políticos prediletos quando são multados por alguma conduta inapropriada.

Há antes de tudo um desafio a quem aplicou a sanção original, uma declaração de que consideram injusta a decisão ou tendenciosos juízes e autoridades que julgaram o caso.

Mas é também um tipo de concessão de imunidade, em que se declara afrontosamente que o político que colocamos debaixo das nossas asas não será tocado pelas mãos parciais da Justiça: essa multa ele não paga, nós pagamos.

Há, pois, uma dupla declaração no ato de cobrir a dívida: o que quer ele tenha feito, foi bem feito; se ele por punido, nós o tornaremos impune.

A desobediência civil ante a injustiça parece nobre, exceto pelo fato de que não estamos sob um regime de exceção e o devido processo é de regra. Nos dois casos recentes, de Dallagnol e de Bolsonaro, tratou-se de uma indenização por ataques à honra e de multas por não usar máscara de proteção em atos públicos na pandemia. Nenhum episódio de lawfare ou casuísmo.

Nas "campanhas de solidariedade", como o PT as chamava em 2014, em favor de Genoino ou Dirceu, essas alegações foram feitas e os petistas responderam aos apelos cobrindo as multas aplicadas como parte da condenação dos dois políticos.

Da perspectiva dos beneficiários das campanhas, porém, o negócio escalonou desde então. Genoino e Dirceu apenas cobriram as multas, e algum excedente —pelo que foi noticiado— foi repassado para cobrir débitos de outros condenados menos populares.

Já a campanha "pague por mim a minha punição" foi um negócio da China. Dallagnol devia R$ 75 mil e teve que pedir que parassem quando as doações chegaram a R$ 500 mil. Bolsonaro tinha obrigações de R$ 936.8 mil e, segundo apurou matérias de O Globo, recebeu R$ 17,2 milhões.

Deputados bolsonaristas, ante o susto com a revelação das doações, gabaram-se de que a meta agora é alcançar R$ 22 milhões em doações.

Só faltou o debochado bordão do saudoso Juca Chaves: "Ajudem o Juquinha a comprar seu caviar". No caso, conforme declaração orgulhosa de Bolsonaro, "Dá para pagar contas e comer pastel com Michelle". Contas que, aliás, ainda não foram pagas, embora o dinheiro esteja aplicado.

Um excelente negócio. Mais rápidas do que rachadinhas, mais limpas do que corrupção, vaquinhas para pagar multas ou indenizações se revelaram um método eficaz de enriquecimento de políticos.

É o ponto de vista dos contribuintes que me fascina. Sempre me impressionaram os fiéis das grandes igrejas neopentecostais que, nos ofertórios, doavam joias, escrituras de casas e documentos de venda de carros, numa espécie de barganha com a divindade.

Mas havia uma teologia e crença religiosa ali, nos muitos rituais a que assisti, pois o sujeito lançava a Deus um desafio: eu te dou mais do que posso para provar a minha fé e isso te obriga a cobrir a minha aposta e me devolver em prosperidade, saúde, paz familiar, etc. Para o crente, aquilo, paradoxalmente, faz sentido.

De algum modo, a seita bolsonarista não resolve só abrir um aplicativo bancário para dar R$ 20 milhões a Bolsonaro. Como na megaigreja neopentecostal, a ideia não é dar a única casa da família à obra do Senhor. É um testemunho de fé: provo à comunidade, ao mundo, aos descrentes e, sobretudo, a mim mesmo, que a crença é verdadeira, que o objeto da minha fé é tão excelso que merece o sacrifício.

A igreja ficar rica ou Bolsonaro comprar mais umas mansões para a família é consequência, o importante é que por esse ato me distingo dos incréus e dos vacilantes em sua crença, e me afirmo como devoto e contrito.

O crente —o religioso e o político— vivem da sua fé, mesmo quando os que não compartilham do credo veem o que fazem e apenas o considerem mais um otário enriquecendo o malandro de plantão.

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

Um comentário:

EdsonLuiz disse...

R$17 milhões... milhões!..., doados em grande parte por idolatria a líder que, em uma avaliação por critérios mais racionais, não precisa nem merece.. E há no Brasil outros líderes carismáticos abusados e venais que têm esse mesmo poder de sedução.

"Áh, mas não tão venal quanto...", dizem certos apoiadores, como se houvesse graus diferenciadores para venalidade.

Sedução é estelionato. Sedução, até quando é boa é estelionato, quanto mais quando o sedutor é venal!