Folha de S. Paulo
A igreja ficar rica ou ex-presidente ter
mais mansões é consequência, o importante é que o ato distingue minha crença
No país do homem cordial, a compaixão por
quem padece suscita muito menos generosidade do que pareceria normal.
De fato, esse é um país muito difícil para
as organizações que pedem ajuda humanitária para instituições que cuidam dos
que sofrem e dos desvalidos. A explicação para tanto é a "fadiga de
compaixão", pois até de misericórdia se cansa quando ela é exigida com
tanta constância.
Em um país de tantas misérias, endurecer o
coração pode ser forma de sobrevivência.
O que não é de fácil entendimento é o
desprendimento com que os brasileiros comuns têm metido a mão no bolso para ir
em socorro de seus políticos prediletos quando são multados por alguma conduta
inapropriada.
Há antes de tudo um desafio a quem aplicou
a sanção original, uma declaração de que consideram injusta a decisão ou
tendenciosos juízes e autoridades que julgaram o caso.
Mas é também um tipo de concessão de imunidade, em que se declara afrontosamente que o político que colocamos debaixo das nossas asas não será tocado pelas mãos parciais da Justiça: essa multa ele não paga, nós pagamos.
Há, pois, uma dupla declaração no ato de
cobrir a dívida: o que quer ele tenha feito, foi bem feito; se ele por punido,
nós o tornaremos impune.
A desobediência civil ante a injustiça
parece nobre, exceto pelo fato de que não estamos sob um regime de exceção e o
devido processo é de regra. Nos dois casos recentes, de
Dallagnol e de
Bolsonaro, tratou-se de uma indenização por ataques à honra e de multas por
não usar máscara de proteção em atos públicos na pandemia. Nenhum episódio de
lawfare ou casuísmo.
Nas "campanhas de
solidariedade", como o PT as
chamava em 2014, em favor de
Genoino ou Dirceu,
essas alegações foram feitas e os petistas responderam aos apelos cobrindo as
multas aplicadas como parte da condenação dos dois políticos.
Da perspectiva dos beneficiários das
campanhas, porém, o negócio escalonou desde então. Genoino e Dirceu apenas
cobriram as multas, e algum excedente —pelo que foi noticiado— foi repassado
para cobrir débitos de outros condenados menos populares.
Já a campanha "pague por mim a minha
punição" foi um negócio da China. Dallagnol devia R$ 75 mil e teve que
pedir que parassem quando as doações chegaram a R$ 500 mil. Bolsonaro tinha
obrigações de R$ 936.8 mil e, segundo apurou matérias de O Globo, recebeu R$
17,2 milhões.
Deputados bolsonaristas, ante o susto com a
revelação das doações, gabaram-se de que a meta agora é alcançar R$ 22 milhões
em doações.
Só faltou o debochado bordão do saudoso
Juca Chaves: "Ajudem o Juquinha a comprar seu caviar". No caso,
conforme declaração orgulhosa de Bolsonaro, "Dá para pagar contas e comer
pastel com Michelle". Contas que, aliás, ainda não foram pagas, embora o
dinheiro esteja aplicado.
Um excelente negócio. Mais rápidas do que
rachadinhas, mais limpas do que corrupção, vaquinhas para pagar multas ou
indenizações se revelaram um método eficaz de enriquecimento de políticos.
É o ponto de vista dos contribuintes que me
fascina. Sempre me impressionaram os fiéis das grandes igrejas neopentecostais
que, nos ofertórios, doavam joias, escrituras de casas e documentos de venda de
carros, numa espécie de barganha com a divindade.
Mas havia uma teologia e crença religiosa
ali, nos muitos rituais a que assisti, pois o sujeito lançava a Deus um
desafio: eu te dou mais do que posso para provar a minha fé e isso te obriga a
cobrir a minha aposta e me devolver em prosperidade, saúde, paz familiar, etc.
Para o crente, aquilo, paradoxalmente, faz sentido.
De algum modo, a seita bolsonarista não
resolve só abrir um aplicativo bancário para dar R$ 20 milhões a Bolsonaro.
Como na megaigreja neopentecostal, a ideia não é dar a única casa da família à
obra do Senhor. É um testemunho de fé: provo à comunidade, ao mundo, aos
descrentes e, sobretudo, a mim mesmo, que a crença é verdadeira, que o objeto
da minha fé é tão excelso que merece o sacrifício.
A igreja ficar rica ou Bolsonaro comprar
mais umas mansões para a família é consequência, o importante é que por esse
ato me distingo dos incréus e dos vacilantes em sua crença, e me afirmo como
devoto e contrito.
O crente —o religioso e o político— vivem
da sua fé, mesmo quando os que não compartilham do credo veem o que fazem e
apenas o considerem mais um otário enriquecendo o malandro de plantão.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Um comentário:
R$17 milhões... milhões!..., doados em grande parte por idolatria a líder que, em uma avaliação por critérios mais racionais, não precisa nem merece.. E há no Brasil outros líderes carismáticos abusados e venais que têm esse mesmo poder de sedução.
"Áh, mas não tão venal quanto...", dizem certos apoiadores, como se houvesse graus diferenciadores para venalidade.
Sedução é estelionato. Sedução, até quando é boa é estelionato, quanto mais quando o sedutor é venal!
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