O Estado de S. Paulo
A desoneração da folha é uma medida sem efeito sobre emprego, renda e crescimento. Mesmo assim, o Congresso decidiu impor ao País um custo de R$ 20 bi
É direito do Congresso Nacional derrubar
qualquer veto presidencial. Foi o que ocorreu no caso do veto ao Projeto de Lei
n.º 334, de 2023, que prorrogava a desoneração da folha de pagamentos e reduzia
a alíquota de contribuição previdenciária de parte dos municípios. Contudo,
essa decisão do Congresso foi intempestiva, pois levou à promulgação da Lei n.º
14.784, em dezembro de 2023, um cheque sem fundos de cerca de R$ 20 bilhões. Só
que o Orçamento público não aceita fiado.
A desoneração da folha é uma medida sem
efeito sobre o emprego, a renda e o crescimento econômico. Mesmo assim, o
Congresso decidiu rejeitar o veto presidencial e impor ao País um custo de
cerca de R$ 20 bilhões. Pior, não mostrou como a conta seria paga, em
desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal.
A Lei Orçamentária Anual não previa recursos para essas duas finalidades – a prorrogação da desoneração da folha para 17 setores de atividade econômica e a redução da alíquota de contribuição previdenciária para um conjunto de municípios (aqueles que utilizam o regime geral da Previdência para seus servidores). O Congresso, depois de garfar R$ 53 bilhões em emendas, no processo orçamentário, deu ao governo mais esse presente de grego.
A reação do ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, foi acertada. Ele indicou que o caminho seria, provavelmente, o da
judicialização. Afinal, a prorrogação da desoneração nos moldes antigos fere a
Emenda Constitucional n.º 103, da reforma da Previdência, por prever a
continuidade da contribuição sobre o faturamento (artigo 30). Mais do que isso,
a responsabilidade fiscal obriga à chamada compensação.
A lógica é direta: quer criar despesas novas
ou reduzir impostos? Então, mostre como a conta será paga. Só não vale usar o
argumento do moto-perpétuo, segundo o qual a medida seria tão boa que, por si
só, geraria maior crescimento econômico e, portanto, produziria mais receitas
para compensar o custo original.
Vamos explicar isso direito. A Lei de
Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101, de 2000), ao regulamentar a
própria Constituição federal, determina o seguinte:
“Art. 14. A concessão ou ampliação de
incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de
receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto
orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos
dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo
menos uma das seguintes condições:
I - demonstração pelo proponente de que a
renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma
do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no
anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;
II - estar acompanhada de medidas de
compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita,
proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração
ou criação de tributo ou contribuição.”
Mais claro, impossível. A lei da desoneração,
derivada da decisão do Congresso Nacional (de derrubar o veto), fere o artigo
14 acima transcrito. Os efeitos das perdas de receita (chamadas de renúncias
fiscais, no jargão) não estão contemplados nas projeções e nas metas fiscais
para 2024, tampouco a nova lei trouxe medidas para neutralizar o custo
contratado.
Os parlamentares conhecem bem o tema. Por
essa razão, foram à mesa negociar com o ministro Fernando Haddad, evitando (por
ora) a judicialização. O próprio Ministério da Fazenda, nesse sentido,
apresentou a Medida Provisória (MP) n° 1.202, com quatro objetivos: a) revogar
a Lei n.º 14.784; b) reonerar mais rapidamente o Perse (programa de ajuda aos
setores de eventos, restaurantes, etc., criado na época da pandemia); c)
focalizar a desoneração da folha à faixa de um salário mínimo, com uma
escadinha para as alíquotas retornarem ao padrão até 2027; e d) limitar o
instituto da compensação tributária.
A proposta é boa, porque estabelece uma
transição crível até o término definitivo do programa de desoneração da folha.
A focalização também é bem-vinda, pois reduz os custos. As mudanças no
cronograma do Perse, por sua vez, vão ajudar a pagar a nova renúncia (agora, de
cerca de R$ 6 bilhões).
Quanto ao item “d”, acima, a ideia do governo
é estancar a sangria de mais uma chaga identificada nos cofres públicos.
Trata-se da compensação tributária – uma maneira de saldar débitos com o Fisco
usando créditos tributários, isto é, direitos adquiridos pelos contribuintes
junto ao Estado. Esses direitos podem ser exercidos por meio de um precatório,
como acontece com qualquer mortal em tantos outros casos.
Mas, nos assuntos tributários, a Receita
Federal permite ao contribuinte usar a compensação. A nova MP autoriza a
fixação de limites para isso. Assim, o governo terá maior previsibilidade sobre
o fluxo de receitas. Cura-se a ferida. Não tem nada a ver com calote, como já
se fala por aí. Essas declarações geram ruído e confusão, alimento à sanha
contra o erário.
Acabar com a “mamata” é difícil, caros
leitores. A lógica do “quem quer dinheiro?” não serve para nada além de ajudar
Silvio Santos a conquistar o auditório. Na gestão das contas do País, o
populismo e seus cheques voadores têm de ser eliminados.
*Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos,
foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo
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