O Estado de S. Paulo
Assim como a ciência, a religião, a política e a guerra, também o atletismo se traduz em melodrama lacrimoso, seja para o mal, seja para o bem
Veio na primeira página do
Estado de anteontem. Você viu a foto, uma cena verdadeiramente olímpica. Ao
centro do pódio, a brasileira Rebeca Andrade ergue as duas mãos para o céu,
volta o rosto para o alto e sorri como quem não deve mais nada a ninguém. Está
lá para receber a medalha de ouro na modalidade solo da ginástica artística.
Uma glória. A seu lado, duas outras atletas, uma à esquerda e outra à direita,
fazem reverência à campeã, como súditas de uma rainha. A já lendária Simone
Biles, medalha de prata, e Jordan Chiles, bronze, ambas dos Estados Unidos,
abaixam a cabeça e se inclinam à majestade da brasileira.
A imagem denota grandeza, generosidade e espírito solidário, sem vaidade alguma. Essas virtudes não eram frequentes nem mesmo no Olimpo. Zeus e seus convivas, dados a rompantes de ciúmes e inveja, promoviam intrigas e urdiam vinganças inomináveis. Simone Biles e Jordan Chiles, quando se dobraram em mesura para homenagear a vitória de uma adversária, foram mais olímpicas que os deuses gregos. A televisão mostrou. As duas, em seguida, deram as mãos a Rebeca e trocaram olhares de quem se admira na alma. Juntas, mostraram que o importante não é competir, mas poder superar com alegria o estado de competição.
Fora isso, posaram,
capricharam na mise-en-scène. Tinham segura consciência de sua condição de
seres olhados no espetáculo do mundo e sabiam muito bem o que encenavam para as
lentes dos fotógrafos. Simone e Jordan agiram de modo coordenado e até se divertiram
com sua sincronizada cumplicidade. Deram seu recado com maestria, com encanto,
com perfeição. Premeditadamente.
Ao que vem a pergunta: a
intencionalidade esvazia o mérito da reverência? Em nada, de modo algum. A
mensagem das três ginastas em congraçamento alcançou o coração da plateia
planetária e permanecerá por muito tempo no plano mais alto das melhores
memórias dos Jogos Olímpicos. Mas não temos como deixar de perceber, enquanto
aplaudimos a beleza do bem-querer das esportistas, que tudo nesta civilização
se apresenta e se consome na forma de imagens carregadas de sentimentalismo.
Assim como a ciência, a religião, a política e a guerra, também o atletismo se
traduz em melodrama lacrimoso, seja para o mal, seja para o bem, como é o caso
presente.
Outra foto que correu os
continentes e principalmente os mares foi aquela do surfista brasileiro Gabriel
Medina suspenso no ar. Eu sei que você também viu. Medina está de pé, com o
indicador direito apontando para cima, o braço estendido, como se acenasse numa
calçada, tranquilo, de boa, feito um... surfista. Está tudo normal ali, a não
ser pelo fato de que ele flutua no espaço. Seus pés se alinham na horizontal,
pisando um chão invisível. Ao lado dele, a prancha, paralela ao seu corpo,
alinhada como um fio de prumo, parece se apoiar sobre o mesmo chão invisível.
Ao fundo, nuvens impassíveis e incrédulas completam o cenário.
Gabriel também tinha domínio
do que estava encenando. Também ele deu seu recado com perfeição: é o número 1,
sabe que é o número 1, sabe que está sendo olhado no espetáculo do mundo e sabe
falar a linguagem do espetáculo. Magistralmente.
Agora, uma observação de
ordem técnica. A cena das três meninas de pele escura foi clicada por centenas
de profissionais do entretenimento. Um inumerável proletariado das câmeras é
autor da imagem. A cena do surfista que voa de pé, não. Apenas um retratista, o
francês Jerome Brouillet, captou o instante. Pontos para ele. Todos os créditos
para ele.
No mais, não faz diferença.
Atletas, padres, generais, cientistas, atrizes, delegados de polícia, mães de
santo e parentes de mães de santo são seres adestrados pelos códigos da imagem
fotográfica – ou cinematográfica. Todos os gestos da humanidade seguem a
gramática aprendida na vastidão e na devassidão das redes sociais – ou
antissociais. No nosso mundo, bebês aprendem a dizer “X” para os celulares em
riste antes mesmo de aprenderem a pronunciar a palavra “mãe” – e os adultos se
exibem para os holofotes como se fossem bebês. É por isso que Gabriel Medina,
Simone Biles, Jordan Chiles e Rebeca Andrade orientam seus corpos para o mesmo
lugar: o olhar social, essa tela recurvada e intangível que tem um insaciável
apetite escópico e que a tudo deglute.
Você pode buscar conteúdos
místicos, informações de enciclopédia, piruetas acrobáticas ou moças que tocam
violão com as unhas pintadas de azul, não importa: os caminhos que seus olhos
terão de percorrer para encontrar o que procuram, isso na melhor das hipóteses,
são os caminhos do entretenimento. Aliás, a abertura dos Jogos Olímpicos foi
uma prova disso. Paris virou uma formidável Disneylândia de esquerda, sob chuva
e lágrimas. É brega? Talvez, mas é o que temos para hoje.
Para Rebeca, Simone e Jordan
eu também me curvo, humilde e fora de forma. A Gabriel Medina eu me rendo,
pedestre e ressequido. Ao pessoal da cinematografia eu ovaciono, insignificante
e tolo. Neles, ao menos, vejo o pouco de verdade que escapole do circo pastoso,
inutilmente.
2 comentários:
Excelente! Realmente, o marketing pessoal ou profissional cada vez mais domina as sociedades ditas "modernas".
Sim!
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