O Globo
Em seu primeiro mandato, nas noites de gala
do Kennedy Center, Trump sempre deixara vazio o camarote reservado ao chefe da
nação. Talvez por receio de ser vaiado, de não saber quando e se aplaudir ou
por falta de apetite mesmo
Uma imagem gerada por inteligência artificial mostra Donald Trump em roupa de maestro e expressão enlevada, regendo uma orquestra de magnitude sinfônica. Foi postada recentemente por ele mesmo em sua plataforma Truth Social. Continha um anúncio: “Por unanimidade, o presidente Donald J. Trump foi eleito presidente do Conselho do prestigioso John F. Kennedy Center for the Performing Arts em Washington, D.C. Faremos [da instituição] um lugar muito especial e animado!”.
Achou desnecessário mencionar que, para isso,
rompeu uma tradição de 53 anos ao defenestrar os 18 democratas do corpo gestor
de 36 integrantes. Desde sua fundação em 1971, este oásis cultural era uma das
poucas instituições federais equanimemente dividida entre republicanos e
democratas, com mandatos de 6 anos.
O choque no mundo das artes foi brutal — para
estes tempos de carnaval no Brasil, algo como Jair Bolsonaro comunicar aos
cariocas que se tornara, numa virada de mesa, presidente da Portela ou da
Mangueira. Em seu primeiro mandato, nas noites de gala da casa, Trump sempre
deixara vazio o camarote reservado ao chefe da nação. Talvez por receio de ser
vaiado, de não saber quando e se aplaudir ou por falta de apetite mesmo. No
palco ou na plateia, a turma não era a dele. Vale lembrar que o Kennedy Center
foi inaugurado com nada menos que uma missa composta especialmente por Leonard
Bernstein, com canto, dramaturgia, e balé de Alvin Ailey.
Deborah Rutter, a presidente do Conselho
agora defenestrada, lançou um alerta na despedida. “Artistas mostram a gama de
emoções da vida — as maiores alturas da alegria e as profundezas do desespero.
Eles seguram um espelho para o mundo, refletindo quem somos e ecoando nossas
histórias. O trabalho deles nem sempre nos faz sentir confortáveis, mas lança
luz sobre a verdade”, escreveu. “Assim como nossa própria democracia, a
expressão artística deve ser nutrida, fomentada, priorizada e protegida. Não é
uma empreitada passiva.”
Não mencionou o presidente, claro, nem
precisava. O próprio Trump já havia oficializado o motivo para ocupar
nominalmente o cargo (indicando um preposto para realizar o trabalho).
Esbanjando maúsculas, garantiu a seus 91,2 milhões de seguidores na plataforma
X ter “uma visão de ERA DE OURO para a Cultura e as Artes americanas. CHEGA DE
SHOW DE DRAGS, OUQUALQUER OUTRA PROPAGANDA ANTI-AMERICANA – APENAS O MELHOR.
BENVINDO AO SHOW BUSINESS”. (O uso indiscriminado de maiúsculas continua sendo
sua grande marca literária.)
Poderia, igualmente, ter escrito a frase:
“Doravante travaremos uma Implacável Guerra de purificação contra os últimos
elementos de nossa decadência Cultural!” . Só que essa última, lembrou o
escritor americano Ed Simon na Hyperallergic, não seria original. Já foi
pronunciada na abertura, em Munique, da Grande Exposição de Arte Alemã em 18 de
julho de 1937 — por Adolf Hitler.
À primeira vista, a vontade de Trump de
ocupar um assento no Kennedy Center pode parecer mero narcisismo e impulso
vingativo. “Mas o fascismo”, escreve Simon, “por sua própria natureza, tem
obsessão por controle cultural”.
Medíocre aquarelista de paisagens rejeitado
pela Academia de Belas Artes de Viena, Hitler foi incapaz de representar a
figura humana. Contudo, ou por isso mesmo, conhecia a força de uma
representação estética totalizante. Junto a Albert Speer, seu arquiteto de
todas as horas, soube impor o ideal ariano a uma Alemanha em busca do orgulho
perdido. Em ensaio de 1975 citado por Simon, a escritora Susan Sontag explica
como o fascismo não é apenas “uma ideologia, mas uma forma estética de fazer
política, contrastando o limpo e o impuro, o incorruptível e o infectado, o
físico e o mental”. Simultaneamente à exposição citada, que continha obras
encomendadas de cenas militares e muito kitsch neoclássico, o próprio partido
nazista achou educativo organizar também uma mostra da “Arte Degenerada” a ser
exorcizada. Nesse balaio entrou, como se sabe, toda uma geração de mestres do
surrealismo, do expressionismo e do cubismo europeus.
Trump ainda é amador nessa área. Mas promete
uma Kulturkampf à altura de seu alcance.
Para não concluir esta coluna em desalento,
fica o convite para quem quer começar bem o domingo antes de cair na batucada.
O link (*) mostra a apresentação da diva Aretha Franklin homenageando Carole
King em noite de gala no Kennedy Center, nos últimos dias do governo Barack
Obama. São quatro minutinhos apenas. À época, a cultura estava no poder.
(*)https://www.youtube.com/watch?v=8cF0tf35Mbo
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