domingo, 2 de março de 2025

A cultura na era Trump - Dorrit Harazim

O Globo

Em seu primeiro mandato, nas noites de gala do Kennedy Center, Trump sempre deixara vazio o camarote reservado ao chefe da nação. Talvez por receio de ser vaiado, de não saber quando e se aplaudir ou por falta de apetite mesmo

Uma imagem gerada por inteligência artificial mostra Donald Trump em roupa de maestro e expressão enlevada, regendo uma orquestra de magnitude sinfônica. Foi postada recentemente por ele mesmo em sua plataforma Truth Social. Continha um anúncio: “Por unanimidade, o presidente Donald J. Trump foi eleito presidente do Conselho do prestigioso John F. Kennedy Center for the Performing Arts em Washington, D.C. Faremos [da instituição] um lugar muito especial e animado!”.

Achou desnecessário mencionar que, para isso, rompeu uma tradição de 53 anos ao defenestrar os 18 democratas do corpo gestor de 36 integrantes. Desde sua fundação em 1971, este oásis cultural era uma das poucas instituições federais equanimemente dividida entre republicanos e democratas, com mandatos de 6 anos.

O choque no mundo das artes foi brutal — para estes tempos de carnaval no Brasil, algo como Jair Bolsonaro comunicar aos cariocas que se tornara, numa virada de mesa, presidente da Portela ou da Mangueira. Em seu primeiro mandato, nas noites de gala da casa, Trump sempre deixara vazio o camarote reservado ao chefe da nação. Talvez por receio de ser vaiado, de não saber quando e se aplaudir ou por falta de apetite mesmo. No palco ou na plateia, a turma não era a dele. Vale lembrar que o Kennedy Center foi inaugurado com nada menos que uma missa composta especialmente por Leonard Bernstein, com canto, dramaturgia, e balé de Alvin Ailey.

Deborah Rutter, a presidente do Conselho agora defenestrada, lançou um alerta na despedida. “Artistas mostram a gama de emoções da vida — as maiores alturas da alegria e as profundezas do desespero. Eles seguram um espelho para o mundo, refletindo quem somos e ecoando nossas histórias. O trabalho deles nem sempre nos faz sentir confortáveis, mas lança luz sobre a verdade”, escreveu. “Assim como nossa própria democracia, a expressão artística deve ser nutrida, fomentada, priorizada e protegida. Não é uma empreitada passiva.”

Não mencionou o presidente, claro, nem precisava. O próprio Trump já havia oficializado o motivo para ocupar nominalmente o cargo (indicando um preposto para realizar o trabalho). Esbanjando maúsculas, garantiu a seus 91,2 milhões de seguidores na plataforma X ter “uma visão de ERA DE OURO para a Cultura e as Artes americanas. CHEGA DE SHOW DE DRAGS, OUQUALQUER OUTRA PROPAGANDA ANTI-AMERICANA – APENAS O MELHOR. BENVINDO AO SHOW BUSINESS”. (O uso indiscriminado de maiúsculas continua sendo sua grande marca literária.)

Poderia, igualmente, ter escrito a frase: “Doravante travaremos uma Implacável Guerra de purificação contra os últimos elementos de nossa decadência Cultural!” . Só que essa última, lembrou o escritor americano Ed Simon na Hyperallergic, não seria original. Já foi pronunciada na abertura, em Munique, da Grande Exposição de Arte Alemã em 18 de julho de 1937 — por Adolf Hitler.

À primeira vista, a vontade de Trump de ocupar um assento no Kennedy Center pode parecer mero narcisismo e impulso vingativo. “Mas o fascismo”, escreve Simon, “por sua própria natureza, tem obsessão por controle cultural”.

Medíocre aquarelista de paisagens rejeitado pela Academia de Belas Artes de Viena, Hitler foi incapaz de representar a figura humana. Contudo, ou por isso mesmo, conhecia a força de uma representação estética totalizante. Junto a Albert Speer, seu arquiteto de todas as horas, soube impor o ideal ariano a uma Alemanha em busca do orgulho perdido. Em ensaio de 1975 citado por Simon, a escritora Susan Sontag explica como o fascismo não é apenas “uma ideologia, mas uma forma estética de fazer política, contrastando o limpo e o impuro, o incorruptível e o infectado, o físico e o mental”. Simultaneamente à exposição citada, que continha obras encomendadas de cenas militares e muito kitsch neoclássico, o próprio partido nazista achou educativo organizar também uma mostra da “Arte Degenerada” a ser exorcizada. Nesse balaio entrou, como se sabe, toda uma geração de mestres do surrealismo, do expressionismo e do cubismo europeus.

Trump ainda é amador nessa área. Mas promete uma Kulturkampf à altura de seu alcance.

Para não concluir esta coluna em desalento, fica o convite para quem quer começar bem o domingo antes de cair na batucada. O link (*) mostra a apresentação da diva Aretha Franklin homenageando Carole King em noite de gala no Kennedy Center, nos últimos dias do governo Barack Obama. São quatro minutinhos apenas. À época, a cultura estava no poder.

(*)https://www.youtube.com/watch?v=8cF0tf35Mbo

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