domingo, 2 de março de 2025

O que fica, com ou sem Oscar – Patricia Machado*

Correio Braziliense

Quando um filme brasileiro sobre a ditadura circula no exterior, ele escancara o fato de que a construção da democracia no Brasil ainda é frágil, que há feridas abertas e que a impunidade dos crimes cometidos pelo Estado segue sendo uma questão latente

Escrevo este texto antes da cerimônia do Oscar. Mais do que celebrar vencedores ou avaliar a dinâmica da premiação, interessa-me pensar no que já foi movimentado por Ainda Estou Aqui desde o momento em que sua indicação foi anunciada. Há momentos em que o cinema é visto como uma forma de transformar realidades, de agir diretamente sobre o presente e sobre a maneira como os espectadores enxergam o mundo. Podemos lembrar do chamado cinema militante dos anos 1960, assim como de Jean Luc Godard, em maio de 1968, segurando uma câmera sem película e mostrando que o ato de filmar era, em si, um ato político. Uma imagem bonita que, talvez, atribua ao cinema mais do que ele pode oferecer. Contudo, se um filme não muda o mundo por si só, ele certamente pode mudar percepções. Pode nos fazer ver o que antes passava despercebido. Pode deslocar narrativas consolidadas e reativar debates que pareciam adormecidos.

Nesse sentido, Ainda Estou Aqui não apenas conta uma história pública e conhecida no Brasil, mas ressignifica esse passado ao levá-lo para as telas, reunindo espectadores de diferentes idades e formações. Seu impacto não se limita às emoções que provoca: ao ganhar projeção, o filme amplia o debate sobre a ditadura militar e os silêncios que ela ainda impõe ao país. Com sua circulação, arquivos antes esquecidos são revisitados, relatos de violência de Estado voltam a ocupar páginas de jornais e pautas televisivas. Há um movimento em cadeia, no qual uma obra artística reativa memórias e atualiza urgências.

Para além de pensar o cinema como catalisador de processos sociais e políticos, interessa entender a dinâmica, mais sutil, que diz respeito à maneira como os filmes atravessam o tempo. Quando uma obra como Ainda Estou Aqui conquista espaço no debate público, no Brasil e no mundo, não apenas recuperamos os acontecimentos que ela dramatiza, mas percebemos como eles seguem ecoando no presente. A questão da memória histórica é uma disputa contínua, e o cinema frequentemente se coloca como um agente dessa batalha.

O Oscar, com toda sua pompa e aparato midiático, muitas vezes é visto apenas como um espetáculo, um evento de celebração da indústria cinematográfica. No entanto, para além das estatuetas, a premiação também funciona como um campo de legitimação. A indicação de um filme brasileiro com essa temática coloca em circulação questões que, de outro modo, poderiam permanecer restritas a determinados círculos intelectuais. A premiação amplia o alcance, faz com que a história de Rubens e Eunice Paiva seja contada em jornais internacionais, discutida em programas de entrevistas e vista por públicos que talvez nunca tivessem entrado em contato com esse episódio da ditadura militar brasileira.

Com ou sem estatueta, Ainda Estou Aqui já nos presenteou com o protagonismo de Fernanda Torres. A corrida ao Oscar abriu os arquivos da nossa memória audiovisual, resgatando trechos de filmes, séries e entrevistas que evidenciam o talento versátil da atriz. Sua inteligência com malemolência, seu humor afiado e sua capacidade de emocionar nos lembram, de alguma forma, de quem somos. Essa revisão de sua trajetória, impulsionada pela indicação, nos permite enxergar como seu trabalho se inscreve na cultura brasileira, como sua presença na tela se tornou, ao longo das décadas, parte do imaginário nacional.

A indicação ao prêmio também levou Fernanda a entrevistas em programas consagrados no exterior, onde sua simpatia ácida se mostrou crucial para apontar contradições incômodas. Em um momento em que o presidente dos Estados Unidos expulsa imigrantes e tensiona as relações com o governo brasileiro, Fernanda trouxe à tona um detalhe que não deveria ser esquecido: a ditadura brasileira foi financiada pelos EUA, os mesmos que se autoproclamam defensores intransigentes da liberdade. Pequenos gestos como esse demonstram como um filme pode ser mais do que um filme. Pode ser um agente de memória. E a memória, sabemos bem, é um território em disputa.

A presença de Ainda Estou Aqui em uma premiação como o Oscar não é apenas um reconhecimento artístico, mas um lembrete de que a história ainda está sendo escrita. Quando um filme brasileiro sobre a ditadura circula no exterior, ele escancara o fato de que a construção da democracia no Brasil ainda é frágil, que há feridas abertas e que a impunidade dos crimes cometidos pelo Estado segue sendo uma questão latente. Como o cinema brasileiro demonstrou e tem demonstrado (é preciso conhecer a multiplicidade e força política desse cinema), os filmes podem nos fazer enxergar o que, de outra forma, poderíamos preferir ignorar. Saindo ou não vitorioso da noite do Oscar, Ainda Estou Aqui vem estimulando os debates.

*Pesquisadora e professora da PUC-Rio. Autora do livro Cinema de arquivo — imagens e memória da ditadura militar

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