Correio Braziliense
Quando um filme brasileiro sobre a ditadura
circula no exterior, ele escancara o fato de que a construção da democracia no
Brasil ainda é frágil, que há feridas abertas e que a impunidade dos crimes
cometidos pelo Estado segue sendo uma questão latente
Escrevo este texto antes da cerimônia do Oscar. Mais do que celebrar vencedores ou avaliar a dinâmica da premiação, interessa-me pensar no que já foi movimentado por Ainda Estou Aqui desde o momento em que sua indicação foi anunciada. Há momentos em que o cinema é visto como uma forma de transformar realidades, de agir diretamente sobre o presente e sobre a maneira como os espectadores enxergam o mundo. Podemos lembrar do chamado cinema militante dos anos 1960, assim como de Jean Luc Godard, em maio de 1968, segurando uma câmera sem película e mostrando que o ato de filmar era, em si, um ato político. Uma imagem bonita que, talvez, atribua ao cinema mais do que ele pode oferecer. Contudo, se um filme não muda o mundo por si só, ele certamente pode mudar percepções. Pode nos fazer ver o que antes passava despercebido. Pode deslocar narrativas consolidadas e reativar debates que pareciam adormecidos.
Nesse sentido, Ainda Estou Aqui não
apenas conta uma história pública e conhecida no Brasil, mas ressignifica esse
passado ao levá-lo para as telas, reunindo espectadores de diferentes idades e
formações. Seu impacto não se limita às emoções que provoca: ao ganhar
projeção, o filme amplia o debate sobre a ditadura militar e os silêncios que
ela ainda impõe ao país. Com sua circulação, arquivos antes esquecidos são
revisitados, relatos de violência de Estado voltam a ocupar páginas de jornais
e pautas televisivas. Há um movimento em cadeia, no qual uma obra artística
reativa memórias e atualiza urgências.
Para além de pensar o cinema como catalisador
de processos sociais e políticos, interessa entender a dinâmica, mais sutil,
que diz respeito à maneira como os filmes atravessam o tempo. Quando uma obra
como Ainda Estou Aqui conquista espaço no debate público, no Brasil e no mundo,
não apenas recuperamos os acontecimentos que ela dramatiza, mas percebemos como
eles seguem ecoando no presente. A questão da memória histórica é uma disputa
contínua, e o cinema frequentemente se coloca como um agente dessa batalha.
O Oscar, com toda sua pompa e aparato
midiático, muitas vezes é visto apenas como um espetáculo, um evento de
celebração da indústria cinematográfica. No entanto, para além das estatuetas,
a premiação também funciona como um campo de legitimação. A indicação de um
filme brasileiro com essa temática coloca em circulação questões que, de outro
modo, poderiam permanecer restritas a determinados círculos intelectuais. A
premiação amplia o alcance, faz com que a história de Rubens e Eunice Paiva
seja contada em jornais internacionais, discutida em programas de entrevistas e
vista por públicos que talvez nunca tivessem entrado em contato com esse
episódio da ditadura militar brasileira.
Com ou sem estatueta, Ainda Estou Aqui já
nos presenteou com o protagonismo de Fernanda Torres. A corrida ao Oscar abriu
os arquivos da nossa memória audiovisual, resgatando trechos de filmes, séries
e entrevistas que evidenciam o talento versátil da atriz. Sua inteligência com
malemolência, seu humor afiado e sua capacidade de emocionar nos lembram, de
alguma forma, de quem somos. Essa revisão de sua trajetória, impulsionada pela
indicação, nos permite enxergar como seu trabalho se inscreve na cultura brasileira,
como sua presença na tela se tornou, ao longo das décadas, parte do imaginário
nacional.
A indicação ao prêmio também levou Fernanda a
entrevistas em programas consagrados no exterior, onde sua simpatia ácida se
mostrou crucial para apontar contradições incômodas. Em um momento em que o
presidente dos Estados Unidos expulsa imigrantes e tensiona as relações com o
governo brasileiro, Fernanda trouxe à tona um detalhe que não deveria ser
esquecido: a ditadura brasileira foi financiada pelos EUA, os mesmos que se
autoproclamam defensores intransigentes da liberdade. Pequenos gestos como esse
demonstram como um filme pode ser mais do que um filme. Pode ser um agente de
memória. E a memória, sabemos bem, é um território em disputa.
A presença de Ainda Estou Aqui em
uma premiação como o Oscar não é apenas um reconhecimento artístico, mas um
lembrete de que a história ainda está sendo escrita. Quando um filme brasileiro
sobre a ditadura circula no exterior, ele escancara o fato de que a construção
da democracia no Brasil ainda é frágil, que há feridas abertas e que a
impunidade dos crimes cometidos pelo Estado segue sendo uma questão latente.
Como o cinema brasileiro demonstrou e tem demonstrado (é preciso conhecer a
multiplicidade e força política desse cinema), os filmes podem nos fazer
enxergar o que, de outra forma, poderíamos preferir ignorar. Saindo ou não
vitorioso da noite do Oscar, Ainda Estou Aqui vem estimulando os debates.
*Pesquisadora e professora da PUC-Rio. Autora do livro Cinema de arquivo — imagens e memória da ditadura militar
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