Folha de S. Paulo
A personalização do poder é própria a
sistemas em que a autoridade é alguém carismático que simboliza o Estado
Talvez sem relevância sociológica, é de
interesse analítico uma curta frase em
entrevista recente do ator Robert De Niro: Donald Trump não
é um homem mau, e sim um malvado. A distinção fica mais clara em inglês, onde
"bad character", mau, tem conotação diversa de "perverse
person", "mean", "wicked", malvado, cruel. Faz sentido
prático estabelecer diferenças dessa ordem, como quando se diz que a droga
mata, mas o narcotráfico assassina. Por igual que seja o efeito danoso, na
avaliação dos riscos sociais muda a estratégia preventiva.
De Niro já interpretou vários homens maus no cinema e bem sabe que a morfologia desse personagem comporta alguma coragem, capaz de ser aferida como virtude. Para enfrentar adversários, o mau precisa de um caráter, que pode oscilar entre o negativo e o positivo na percepção do público. Já o malvado está mergulhado em si mesmo, sem alteridade possível, como o Drácula lendário desprovido de reflexo no espelho, atuando como máquina humana tipo "idiot savant", o autista que incorpora um mecanismo computacional. Mas diferente deste, o malvado, agente ativo do caos, apenas destrói.
Essa não é perspectiva comum ao campo
habituado a pautar análises por disciplinas sociais que sobrepõem o coletivo ao
individual, centradas em condições concretas como classes, produção e Estado.
No entanto, a
personalização do poder é tendência própria a sistemas em que o
titular da autoridade é alguém carismático que simboliza o Estado e assume
responsabilidade pelas ações. A performance individual é então maior do que a
impessoalidade burocrática da coerção.
A essa linha crítica se adequa a tese da
maior responsabilidade de Hitler com seu círculo imediato na biopolítica
de extermínio do Terceiro Reich. Embora o antissemitismo deite raízes
seculares no cristianismo europeu, a obsessão pessoal de Hitler foi
decisiva para a implantação dos campos de concentração e para a extensão do
ódio a ciganos e outras minorias. Himmler, o organizador dos campos, seguia o
impulso, mas como derivação da potência infecciosa do Führer.
É que o malvado infecta. Diferente do homem
mau, não vê na vítima um oponente direto, como o inimigo na guerra, mas um alvo
de aniquilação programada, contagiosa ao ponto que crie um consenso. Isso fez
o hitlerismo
por meio do rádio e das marchas triunfais. É também o que as redes
sociais fazem pelo trumpismo. Entre nós, calcula-se que deepweb e fundamentalismo
religioso sejam correias de ativação infecciosa do vírus extremista.
Razão não falta aos observadores que
descartam a "teoria do louco" aplicada ao comportamento caótico de
lideranças ultradireitistas. Hitler não era louco, mas um incubador de novos
paradigmas pelo caos. Musk
exibe uma motoserra após demitir funcionários públicos e, segundo a
CNN, os alvos não são de iniciantes, e sim dos mais competentes. Pelo caos, ele
e Trump perseguem a ruptura entre Estado e povo para consolidar o modelo de
superprodução das elites e empobrecimento das massas. Um percurso lógico e perverso.
Para bem figurá-lo, impõe-se esquecer categorias como bem e mal, palhaço e
estadista. O estupor puro e simples inaugura a era da hipermalvadeza no poder.
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