Correio Braziliense
No ano em que o filme se passa, coube à
Unidos de Padre Miguel abrir os desfiles de escolas de samba. Não havia
Sambódromo, e a passarela era a Presidente Vargas
A arte existe porque a vida não basta, como
dizia o poeta Ferreira Gullar. Em pleno domingo de carnaval, a arte brasileira
pede passagem nos desfiles de escolas de samba e na sessão de premiação da 97ª
edição do Oscar. Fernanda Torres e o filme do qual é protagonista, Ainda
estou aqui, de Walter Salles Júnior, disputam três categorias do maior prêmio
do cinema mundial: melhor atriz, melhor filme e melhor filme estrangeiro.
O Brasil vai sambar com um olho na Marques de Sapucaí e outro no tradicional Teatro Dolby, em Los Angeles, Califórnia, onde ocorrerá a cerimônia do Oscar. O tapete vermelho será exibido ao vivo, a partir das 20h30, na telinha, enquanto a Unidos de Padre Miguel abrirá a passarela às 22h, com o enredo Egbé Iya Nassô. O Brasil vai parar para assistir a tudo isso, assim como aconteceu na "corrente pra frente" da Copa do Mundo de Futebol de 1970, no México, transmitida pela tevê.
Por ironia da história, Ainda estou aqui é
um recorte dos 21 anos de ditadura militar, um tormentoso processo político
marcado por sequestros, torturas e assassinatos, a partir do drama familiar de
Eunice, viúva do ex-deputado Rubens Paiva (PTB-SP), que desapareceu num quartel
do Exército no Rio de Janeiro. É fruto de uma longa trajetória do cinema
brasileiro, cujo reconhecimento internacional, iniciado com o Cinema Novo, hoje
pode finalmente chegar à consagração artística maior e a um novo patamar de
mercado.
Walter Salles concorre ao prêmio pela segunda
vez, a primeira foi com Central do Brasil, estrelado por Fernanda Montenegro,
mãe de Fernanda Torres, que também aparece em Ainda estou aqui, no fim do
filme, como Eunice idosa e com Alzheimer. Essa é a primeira coprodução da Globo
Play, ao lado da Sony, Arte France e Conspiração, e marca a transição da
teledramaturgia consagrada da TV Globo para o patamar dos
blockbusters destinados ao streaming internacional.
Quando ocorreu o sequestro e a morte de
Rubens Paiva, as Organizações Globo estavam aliadas ao regime militar, embora
abrigassem notórios comunistas na redação do seu jornal, que completa 100 anos,
e na tevê. O drama de Eunice Paiva, coincidentemente, começa no ano em que se
exibia a novela O homem que deve morrer, de Janete Clair, esposa do
dramaturgo comunista Dias Gomes e autora das novelas de maior sucesso na fase
de maior repressão do regime militar: Irmãos Coragem (197O), Selva
de Pedra (1972) e Pecado Capital (1975).
Ao produzir o filme de Walter Salles Júnior,
a emissora faz um ajuste de contas com o seu próprio passado, que é muito bem
retratado pelo jornalista Ernesto Rodrigues no livro A Globo:
Hegemonia,1965-1984 (Autêntica). É o primeiro volume da trilogia que faz
uma imersão profunda e independente nos bastidores da maior emissora do Brasil,
cuja história se entrelaça com o poder militar e uma revolução na tevê,
protagonizada por Roberto Marinho, Walter Clark e José Bonifácio de Oliveira
Sobrinho, o Boni.
Ó abre-alas
No ano em que Rubens Paiva foi sequestrado e
assassinado, coube à Unidos de Padre Miguel abrir os desfiles de escolas de
samba. Não havia Sambódromo, e a passarela era a Avenida Presidente Vargas.
Naquela ocasião, o Acadêmicos do Salgueiro conquistou o seu quinto título, com
um desfile sobre a história de uma visita de nobres africanos a Maurício de
Nassau no Recife.
O enredo Festa para um rei negro fora
sugerido por Joãozinho Trinta e Maria Augusta, que venceram no carnaval do Rio
pela primeira vez. O desfile também teve a assinatura de Arlindo Rodrigues e
Fernando Pamplona. Um dos destaques da apresentação foi o samba-enredo composto
por Zuzuca, eternizado pelo refrão "O-lê-lê, o-lá-lá / Pega no ganzê /
Pega no ganzá", que é cantado até hoje na quadra do Salgueiro.
Campeã do ano anterior, a Portela ficou com o
vice-campeonato ao homenagear o bairro da Lapa. Terceiro colocado, o Império
Serrano realizou um desfile sobre a Região Nordeste do Brasil. Estação Primeira
de Mangueira, em quarto lugar, trouxe o enredo Os modernos bandeirantes. Com um
desfile sobre a cana-de-açúcar, a Unidos de Vila Isabel se classificou em
quinto lugar.
A grata surpresa foi a sétima colocada, a
Imperatriz Leopoldinense, com o enredo Barra de ouro, barra de rio, barra de
saia, com samba de Zé Catimba, um ano depois do antológico samba Oropa, França
e Bahia, de Carlinhos Sideral, sobre a Semana de Arte Moderna. Nos meios de
comunicação e nos enredos, não havia qualquer possibilidade de crítica ao
regime militar. O carnaval de rua era só para os foliões de raça dos blocos de
sujo da Avenida Rio Branco, do minguado desfile do Cordão do Bola Preta e de
dois grandes blocos rivais, Bafo da Onça e Cacique de Ramos.
A música mais tocada nas rádios era Ninguém
segura esse país, de Brasinha, que enaltecia o regime militar e abria o elepê
das marchinhas de carnaval de 1971. Nem de longe era páreo para Ó
abre-alas (Chiquinha Gonzaga,1899), Mamãe eu quero (Jararaca e
Vicente Paiva, 1936), A jardineira (Humberto Porto e Benedito Lacerda,
1938), Allah-lá-ô (Haroldo Lobo e Nássara, 1940), Aurora (Mario
Lago, 1941) e Cachaça (Mirabeau Pinheiro, Lúcio de Castro e Heber
Lobato, 1953), entre outras que são cantadas até hoje.
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