Correio Braziliense
Nenhuma mulher gostaria de fazer um aborto,
da mesma forma que nenhum cidadão gostaria de fazer uma cirurgia, mas ele não
pode ser proibido. O que cabe a um Estado moderno é permitir o aborto e fazer
com que os hospitais públicos sejam autorizados a realizá-lo
Uma das características do Estado Democrático
é a separação entre o poder político e a religião. Embora esse não seja um
assunto completamente resolvido, pois ainda há ranços de diferentes religiões
em vários Estados nacionais, é possível afirmar que a liberdade religiosa é uma
característica da democracia e a interferência do universo das crenças na
organização política tende a criar problemas que não deveriam aparecer nos dias
de hoje. A separação beneficia um e outro, Estado e religião.
Não tem mais nenhum sentido, no atual estágio de desenvolvimento histórico, uma pessoa tentar obrigar outra a acreditar. Se for algo comprovado cientificamente, não é questão de fé, pois é racionalmente demonstrável; se for uma questão de fé, exige a adesão de cada indivíduo. São verdades com origens diferentes, uma da razão, outra da revelação. Confundir, embaralhar fé e razão, não é razoável, como não é razoável questionar, racionalmente, as intenções de uma divindade, uma vez que isso tem a ver com fé, não com razão.
Peço licença para narrar uma lembrança que me
marcou, embora eu fosse ainda muito pequeno. Logo depois do fim da guerra
(1939-1945), um sobrevivente de Auschwitz passou por Sorocaba, onde eu morava,
em uma patética busca por algum familiar eventualmente vivo. Perguntado sobre
as intenções de Deus, ao permitir aquele massacre sistemático e cruel,
perpetrado por um povo, supostamente culto e civilizado, sobre outro, respondeu
que não poderia mais acreditar na existência de qualquer ente superior, pois,
se ele existisse, não poderia ter permitido o que aconteceu naquele campo de
extermínio. E quem teria coragem de confrontar um ser humano que sofreu
torturas inenarráveis durante os anos em que permaneceu prisioneiro, vendo
familiares e amigos sendo levados à morte, sem culpa e sem
julgamento?
Quando uma religião passa a desempenhar
importante papel político, em qualquer momento da história, é fundamental
conhecer a circunstância em que isso aconteceu, os motivos que a levaram a ter
protagonismo político. Fatalmente, acabaremos nos deparando com situações que
não têm muito a ver com ética, compaixão e espiritualidade. Veremos, antes,
populações inteiras constrangidas a segui-la, por bem ou por mal. Basta estudar
história para constatar essa verdade.
Claro que uma religião pode agir como uma
força moral. Ela pode fazer isso quando prega junto a seus fiéis nos espaços
determinados para isso (sejam mesquitas, templos, sinagogas, terreiros ou
outros), quando apresenta fórmulas de sujeição espiritual (orações,
compromissos, promessas), quando estimula a generosidade (auxílio a pobres,
viúvas, órfãos, doentes, dependentes, desempregados). Assim, e de várias outras
formas, ela está atuando dentro de seus objetivos.
O problema é quando um grupo de crentes,
armados ou não, passa a impor suas verdades. E pior, apresentá-las como únicas;
e, mais grave, obrigatórias, uma vez que querem que essas supostas verdades
sejam partilhadas e praticadas, por bem ou por mal, por todos. Foi o que
aconteceu com o cristianismo, quando de sua expansão inicial, ainda durante o
Império Romano, ou durante a atuação de Portugal e Espanha nas Américas, quando
os europeus tentavam impor uma crença exótica a tupis e guaranis, aos incas,
astecas e maias. Foi o que aconteceu com o islamismo, enfiando seus preceitos
goela abaixo nos habitantes da Ásia Central (era crer ou morrer) e até nos
ibéricos. É o que grupos fundamentalistas islâmicos ainda estão fazendo em
alguns lugares, como o Afeganistão.
Há uma incompatibilidade entre valores
religiosos, liberdade religiosa e Estado moderno. A questão é simples, basta
imaginar situações: se um judeu religioso, em Jerusalém, opta por não trabalhar
no sábado, pois interpreta que até passear de automóvel nesse dia ofende ao seu
Deus, ele deve ter o direito de fazer isso. O que ele não pode é impedir que
não judeus, ou seguidores de uma versão mais liberal do judaísmo, sejam
impedidos de viajar no sábado, único dia de descanso semanal. É um
direito do cidadão em um país moderno.
E aí chegamos ao Brasil. Já é hora de
enfrentarmos seriamente a questão da prática do aborto. É aceitável a ideia de
as mulheres não terem o direito de praticar o aborto? Ninguém é "favorável
ao aborto", mas estamos falando de ter o direito democrático de
praticá-lo, se a posição da mulher for favorável a esse procedimento? Não
é uma intervenção indevida da norma religiosa no direito da cidadã? Tenho
certeza de que nenhuma mulher gostaria de fazer um aborto, da mesma forma que
nenhum cidadão gostaria de fazer uma cirurgia, mas ele não pode ser proibido. O
que cabe a um Estado moderno é permitir o aborto e fazer com que os hospitais
públicos sejam autorizados a realizá-lo.
Sejamos objetivos. O absurdo da situação é
permitir que, na prática, pessoas com melhor condição econômica continuem a
praticá-lo em clínicas particulares e caras. E que as mulheres pobres continuem
correndo riscos desnecessários em pseudoclínicas de fundo de quintal.
Estado democrático e hipocrisia não convivem bem.
*Historiador e editor, professor titular
concursado da Unicamp, doutor e livre docente da USP, escritor
Nenhum comentário:
Postar um comentário