domingo, 2 de março de 2025

A marca que o tempo dará - Míriam Leitão

O Globo

Governo Lula será reconhecido por ter evitado o risco à democracia, mas isso não abona os erros da administração diária do país

O que mais se diz sobre o governo Lula é que ele não tem marca. Se fosse outro o resultado da eleição, a democracia brasileira estaria em extremo perigo. E mais, se o presidente Lula, no dia 8 de janeiro de 2023, tivesse caído na armadilha de decretar uma GLO, o que teria acontecido? No dia 20 de janeiro, ele foi visitar os Yanomami com oito ministros. Eles viviam um ataque sistemático, incentivado pelo governo anterior. O desmatamento caiu nos dois últimos anos. A pauta da educação era o homescholling. A saúde era anticiência. No futuro, quando se olhar para esse período, essa será a marca, a de ter confrontado essa tragédia. Mas o que as pessoas querem, naturalmente, é um governo que tenha melhor desempenho, e isso não se consegue com truques de marketing.

Há uma diferença muito forte entre o que teria sido a continuidade do governo Bolsonaro, com o projeto de destruição da democracia, e o governo Lula. Isso não dá a Lula indulgência plenária, mas é preciso ter isso em mente. Até porque muito teve que ser reconstruído. Houve um deliberado desmonte da máquina.

Na economia, havia o discurso liberal, mas a prática estava longe disso. Para citar um exemplo, o grande objetivo na área tributária era recriar uma espécie de CPMF, e o ministro Fernando Haddad conduziu um processo difícil e árduo que levou à aprovação da Reforma Tributária.

Na quinta-feira, foi anunciado o desemprego do trimestre terminado em janeiro. É o menor para o período em dez anos. Ainda há 7,2 milhões de desempregados, mas 103 milhões de brasileiros têm trabalho. A taxa de subutilização da mão de obra, pessoas que trabalham menos do que gostariam, está em 15%. Alta. Mas estava em 23,9% em 2022, o melhor ano do governo passado.

É preciso considerar em qualquer análise que o governo Bolsonaro enfrentou a pior crise sanitária em um século. Mas tudo foi pior pelas escolhas que ele fez de combater medidas de proteção à vida, de propagar o negacionismo, de debochar do sofrimento, de confrontar o Supremo, os governadores e os prefeitos. Houve um momento em que a imprensa teve que fazer um consórcio entre grupos concorrentes para que o país soubesse o número diário de mortes. Vivemos uma tragédia na saúde sem ter do presidente da República uma palavra de conforto. Nós nos confortamos, num tempo sem abraços e sem ritual do luto.

Nunca esquecer o passado, mas também não ser indulgente com o presente. O presidente Lula demitiu a ministra Nísia Trindade de uma forma revoltante. Ele tem o direito de escolher seus ministros, mas não pode submetê-los ao processo de fritura, porque isso é humilhante. Sendo com uma mulher, é ainda pior, porque elas têm pouco espaço de poder. Repete-se aqui o mesmo método de demissão que atingiu Ana Moser. Nísia sempre terá o respeito de quem a viu, em pleno governo negacionista, blindando a Fiocruz, de onde saíram vacinas para os brasileiros. O ministro Alexandre Padilha fez uma boa gestão na Saúde e pode voltar a ter sucesso, mas como ministro das Relações Institucionais, ele não teve a habilidade necessária. Houve momentos em que outros tiveram que ser escalados para algumas das suas funções, porque o presidente da Câmara dos Deputados não falava com ele. Se é por falta de “entrega” houve dois pesos e duas medidas.

A ida de Padilha para a Saúde e de Gleisi Hoffmann para as Relações Institucionais torna o governo mais petista e cada vez mais distante da frente de que ele precisa, dado que o principal adversário continua sendo o risco à democracia. As forças de centro precisam se sentir representadas no caminho para 2026.

As pesquisas estão todas desastrosas para o governo, e esse é o momento em que, em qualquer administração, bate o desespero e o governo erra mais. A opinião pública tem a percepção de que o governo vai mal em muitas áreas, e por isso é preciso trabalhar mais e melhor. O ovo está caro porque houve um surto de gripe aviária e o calor excessivo tem reduzido a produção. Não adianta explicar isso. Cada vez que o consumidor e a consumidora forem comprar ovos, ficarão bravos com o governo.

Mas não devemos perder de vista uma questão fundamental. Neste mês de março, vamos comemorar 40 anos de democracia. E só poderemos celebrar porque aqueles planos tramados no Palácio do Planalto no governo Bolsonaro foram derrotados. Esta é a marca que ficará do governo e isso não é o marketing que faz. São os fatos.

 

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