O Estado de S. Paulo
Manter a mobilização da sociedade civil, quando o mais inofensivo ato de protesto pode levar à prisão, não é tarefa fácil
Antes do início de sua apresentação em evento online da Fundação Fernando Henrique Cardoso, em 13 de fevereiro, perguntei a María Corina Machado se ela se recordava da visita que nos havia feito em abril de 2014. A resposta surpreendeu a mim e a Celso Lafer, atual presidente da fundação, que fazíamos as honras da casa: sim, perfeitamente, foi a última vez que deixei a Venezuela, disse ela falando de lugar desconhecido em seu país, onde vive na clandestinidade desde agosto do ano passado, depois da colossal fraude eleitoral e da onda repressiva que se seguiu, quando a ditadura venezuelana se escancarou de vez.
Quatorze anos atrás, María Corina já era uma
líder importante da oposição, mas em papel coadjuvante. No presente, é a sua
líder inconteste. Em uma hora de exposição, perguntas e respostas, fez relatos
sobre as perseguições contra a oposição, cujas principais lideranças estão
presas, no exílio ou na clandestinidade, e descreveu a natureza ditatorial e
mafiosa do regime, em que se combinam traços do autoritarismo cubano, em
especial em matéria de vigilância e repressão, com características típicas de
organizações criminosas (se a influência cubana “organiza” o regime
venezuelano, as disputas mafiosas o tornam instável, como bem observou). Mais
importante, além da determinação de perseverar na luta contra a ditadura,
mostrou ter clareza sobre como fazê-lo. Destacou quatro vertentes: organização
da sociedade civil, isolamento internacional da ditadura; estímulo a
dissidências dentro do governo e consolidação de uma grande aliança não apenas
para remover o regime de Maduro, mas principalmente para poder governar o país
em seguida.
Manter a mobilização da sociedade civil,
quando o mais inofensivo ato de protesto pode levar à prisão, não é tarefa
fácil. Mas María Corina fala com a autoridade de quem provocou um terremoto na
cena política venezuelana a partir do final de 2023. Ou, nas palavras de Celso
Lafer, valendo-se de Hannah Arendt, soube “gerar poder (novo e legítimo,
acrescento) pela capacidade de agir em conjunto”. Primeiro, insistiu na
realização de primárias para a escolha do candidato da oposição à presidência,
contra o ceticismo de alguns aliados e o escárnio do regime. Segundo, venceu
com mais de 90% dos votos eleições primárias que levaram às urnas 3,5 milhões
de cidadãos, apesar de todas as adversidades enfrentadas. Terceiro, cassada a
sua candidatura pela ditadura, tomou pelo braço um até então desconhecido
diplomata aposentado, Edmundo González, e com ele percorreu o país por terra,
já que a ditadura os impedia de viajar de avião, arrastando atrás de si
milhares e milhares de pessoas.
O trabalho de isolar o regime
internacionalmente avança. À posse fraudulenta de Maduro no dia 10 de janeiro
deste ano só compareceram dois chefes de Estado: os ditadores de Cuba, Miguel
Díaz-Canel, e da Nicarágua, Daniel Ortega. Nenhum país democrático do mundo
reconheceu a sua vitória.
María Corina agradeceu a sociedade e as
instituições brasileiras pelo apoio e o governo do Brasil por ter assumido a
embaixada da Argentina em Caracas, onde ainda hoje estão sob proteção
diplomática líderes da oposição, submetidos a cortes de água e luz e ao acosso
do governo venezuelano, que cercou a embaixada com forças de segurança. Saudou
a mudança de posição do presidente Lula, ao se dar conta de que, em suas
palavras, Maduro não dará ouvidos nem sequer aos seus “antigos aliados”. Mas
demandou mais empenho, não só do Brasil, em fazer valer as regras do direito
internacional humanitário e de proteção dos direitos humanos.
Deu resposta habilidosa ao ser perguntada
sobre sua avaliação dos primeiros movimentos do governo Trump, que enviou um
emissário para se entrevistar com Maduro, em claro sinal de disposição para
negociar com a ditadura, em troca de que a Venezuela receba venezuelanos
deportados dos Estados Unidos. María Corina reconheceu haver no novo governo
americano setores para os quais a Venezuela só interessa pelo petróleo que
exporta, mas ressaltou a interlocução com o novo secretário de Estado, Marco
Rubio.
Sobre a necessidade de uma ampla aliança das
oposições, mostrou ter aprendido a importância de combinar firmeza de valores e
convicções com a flexibilidade política necessária para somar forças na luta
contra a ditadura.
Ao final, pediu o apoio de todos à causa da
democracia na Venezuela. Disse não se tratar de uma questão de ser de esquerda
ou de direita, mas de ter compromisso com valores democráticos e humanitários.
Não poderia ter concluído melhor.
Democracia e estabilidade na Venezuela são do
interesse do Brasil. Inversamente, não é do nosso interesse que potências de
fora da região (nem Estados Unidos, nem China, muito menos a Rússia)
intervenham na crise venezuelana. Com Trump mandando às favas o Direito
Internacional e o soft power americano, as forças democráticas na América
Latina têm uma oportunidade histórica para mostrar que a região pode assumir
protagonismo na resolução de suas crises.
*DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP
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