domingo, 2 de março de 2025

Somos todos venezuelanos - Sergio Fausto

O Estado de S. Paulo

Manter a mobilização da sociedade civil, quando o mais inofensivo ato de protesto pode levar à prisão, não é tarefa fácil

Antes do início de sua apresentação em evento online da Fundação Fernando Henrique Cardoso, em 13 de fevereiro, perguntei a María Corina Machado se ela se recordava da visita que nos havia feito em abril de 2014. A resposta surpreendeu a mim e a Celso Lafer, atual presidente da fundação, que fazíamos as honras da casa: sim, perfeitamente, foi a última vez que deixei a Venezuela, disse ela falando de lugar desconhecido em seu país, onde vive na clandestinidade desde agosto do ano passado, depois da colossal fraude eleitoral e da onda repressiva que se seguiu, quando a ditadura venezuelana se escancarou de vez.

Quatorze anos atrás, María Corina já era uma líder importante da oposição, mas em papel coadjuvante. No presente, é a sua líder inconteste. Em uma hora de exposição, perguntas e respostas, fez relatos sobre as perseguições contra a oposição, cujas principais lideranças estão presas, no exílio ou na clandestinidade, e descreveu a natureza ditatorial e mafiosa do regime, em que se combinam traços do autoritarismo cubano, em especial em matéria de vigilância e repressão, com características típicas de organizações criminosas (se a influência cubana “organiza” o regime venezuelano, as disputas mafiosas o tornam instável, como bem observou). Mais importante, além da determinação de perseverar na luta contra a ditadura, mostrou ter clareza sobre como fazê-lo. Destacou quatro vertentes: organização da sociedade civil, isolamento internacional da ditadura; estímulo a dissidências dentro do governo e consolidação de uma grande aliança não apenas para remover o regime de Maduro, mas principalmente para poder governar o país em seguida.

Manter a mobilização da sociedade civil, quando o mais inofensivo ato de protesto pode levar à prisão, não é tarefa fácil. Mas María Corina fala com a autoridade de quem provocou um terremoto na cena política venezuelana a partir do final de 2023. Ou, nas palavras de Celso Lafer, valendo-se de Hannah Arendt, soube “gerar poder (novo e legítimo, acrescento) pela capacidade de agir em conjunto”. Primeiro, insistiu na realização de primárias para a escolha do candidato da oposição à presidência, contra o ceticismo de alguns aliados e o escárnio do regime. Segundo, venceu com mais de 90% dos votos eleições primárias que levaram às urnas 3,5 milhões de cidadãos, apesar de todas as adversidades enfrentadas. Terceiro, cassada a sua candidatura pela ditadura, tomou pelo braço um até então desconhecido diplomata aposentado, Edmundo González, e com ele percorreu o país por terra, já que a ditadura os impedia de viajar de avião, arrastando atrás de si milhares e milhares de pessoas.

O trabalho de isolar o regime internacionalmente avança. À posse fraudulenta de Maduro no dia 10 de janeiro deste ano só compareceram dois chefes de Estado: os ditadores de Cuba, Miguel Díaz-Canel, e da Nicarágua, Daniel Ortega. Nenhum país democrático do mundo reconheceu a sua vitória.

María Corina agradeceu a sociedade e as instituições brasileiras pelo apoio e o governo do Brasil por ter assumido a embaixada da Argentina em Caracas, onde ainda hoje estão sob proteção diplomática líderes da oposição, submetidos a cortes de água e luz e ao acosso do governo venezuelano, que cercou a embaixada com forças de segurança. Saudou a mudança de posição do presidente Lula, ao se dar conta de que, em suas palavras, Maduro não dará ouvidos nem sequer aos seus “antigos aliados”. Mas demandou mais empenho, não só do Brasil, em fazer valer as regras do direito internacional humanitário e de proteção dos direitos humanos.

Deu resposta habilidosa ao ser perguntada sobre sua avaliação dos primeiros movimentos do governo Trump, que enviou um emissário para se entrevistar com Maduro, em claro sinal de disposição para negociar com a ditadura, em troca de que a Venezuela receba venezuelanos deportados dos Estados Unidos. María Corina reconheceu haver no novo governo americano setores para os quais a Venezuela só interessa pelo petróleo que exporta, mas ressaltou a interlocução com o novo secretário de Estado, Marco Rubio.

Sobre a necessidade de uma ampla aliança das oposições, mostrou ter aprendido a importância de combinar firmeza de valores e convicções com a flexibilidade política necessária para somar forças na luta contra a ditadura.

Ao final, pediu o apoio de todos à causa da democracia na Venezuela. Disse não se tratar de uma questão de ser de esquerda ou de direita, mas de ter compromisso com valores democráticos e humanitários. Não poderia ter concluído melhor.

Democracia e estabilidade na Venezuela são do interesse do Brasil. Inversamente, não é do nosso interesse que potências de fora da região (nem Estados Unidos, nem China, muito menos a Rússia) intervenham na crise venezuelana. Com Trump mandando às favas o Direito Internacional e o soft power americano, as forças democráticas na América Latina têm uma oportunidade histórica para mostrar que a região pode assumir protagonismo na resolução de suas crises.

*DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

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