domingo, 2 de março de 2025

Reaprender a navegar é preciso - Carlos Melo

O Globo

Esperava-se um Lula capaz de compreender o espírito do tempo, vislumbrar o futuro, acelerar a História e dar o salto

O GLOBO publicou recente artigo — “Um governo navegado pelo mar” — em que apontei problemas no governo Lula. Dias depois, texto do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro — Kakay, amigo e apoiador do presidente — veio a público com diagnóstico constrangedor das dificuldades do presidente. Paralelamente, pesquisas apuraram maiores quedas na popularidade presidencial e explicitaram a tormenta no petismo.

Indiferente às críticas e apesar de alterações esperadas no ministério, Lula segue a delongar decisões que terá de tomar: definir as linhas de um projeto de futuro, realinhar o governo à maioria do Congresso e estabelecer vínculos efetivos com a sociedade do século XXI. A depender disso, encaminhar a estratégia da reeleição.

O noticiário aponta que disputas no PT retardariam o processo. É antiga a síndrome de prima-dona da legenda, mas seria estranho que paralisasse um político experiente como Lula. O problema é maior: encontra-se, antes, na incompreensão de questões estruturais que pioram o desempenho geral.

Ultrarrevolucionário, o capitalismo transforma radicalmente a economia e a sociedade, destruindo estruturas que ele mesmo criou. Atropela forças políticas e abala instituições que necessitarão ser reinventadas. Enquanto isso não se conclui, o mal-estar dá vazão à antipolítica, produz falsos profetas e charlatães.

Conforma-se um vazio incapaz de repactuar acordos e restabelecer alianças. Só bem mais tarde, após assimilar a mudança, é que a política, recomposta, construirá saídas e reordenará instituições. No futuro, a decantação purgará do corpo social elementos como Donald Trump e seus satélites, como Jair Bolsonaro. Levará tempo, causará estragos.

Na virada dos séculos XIX e XX, dinâmica semelhante resultou em duas grandes guerras mundiais. Atualmente, cenário comparável seria avassalador. Vetos cruzados e a dimensão da hecatombe são o que, espera-se, poderá evitá-la.

O que se cobra de Lula e do PT é reagirem a esse ambiente. Porém, sem compreender o quadro, chamam de “fascismo” as sombras que enxergam. Não estão de todo errados. Mas esse tipo de animal não surge por geração espontânea. O vazio é a incubadora de onde a banalidade de seu mal se espalha.

Ilusoriamente, parte da esquerda resiste nas trincheiras do caos ordenado da sociedade industrial que se esvai. Seus adversários, pior, revivem o tempo da inquisição. Às bruxas que perseguem, chamam de “comunistas”. Fixados no retrovisor, ambos ignoram a estrada.

No Brasil, partidos e políticos mostram-se desaparelhados para formular e agir nesse contexto. Acomodaram-se a fundos partidários e eleitorais, a orçamentos secretos, a guetos ideológicos. Engessada por suas mazelas, também a universidade é incapaz de intervir plenamente.

A insatisfação com o presente e a ânsia por soluções clamam, no entanto, por uma fuga para a frente. É provável que ainda não tenham surgido, no planeta, indivíduos, coletivos — príncipes — à altura do desafio. A História estabelece seu ritmo.

Esperava-se um Lula capaz de compreender o espírito do tempo, vislumbrar o futuro, acelerar a História e dar o salto. Mas o muito que o limite de sua liderança permitiu foi a vitória circunstancial sobre Jair Bolsonaro e a reconexão com necessárias políticas públicas. Importante, fundamental. Mas não suficiente.

Antes que a fúria destrua o iluminismo que a fundou, a sociedade democrática deve reconhecer a fadiga dos materiais, reorganizar a compreensão do mundo, elaborar projetos e programas amplos, inovadores. Para além do WhatsApp, formar grupos de elaboração (think tanks) sem limites setoriais, pressões corporativas e interesses parciais — por justos que sejam. Novas lideranças surgirão daí. Se “o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar”, reaprender a navegar é preciso.

*Carlos Melo cientista político, é professor senior fellow do Insper

 

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