Valor Econômico
Absurdos que Alain Finkielkraut viu no Brasil 34 anos atrás ainda estão aqui
Passados exatos 40 anos desde o fim da
ditadura militar, o Brasil é hoje um país totalmente democrático? Vejam a
opinião abaixo: “Estive no Brasil há dois anos. É claro que não se trata de um
país totalitário nem de uma ditadura, mas nem por isso é democrático, apesar
das eleições recentes. Um país onde podem reinar desigualdades tão tremendas,
onde o preço da vida é pequeno, onde as regras mínimas de segurança não parecem
respeitadas, onde alguns podem enriquecer à toda, enquanto outros vivem na
miséria mais vergonhosa, para mim não é um país totalmente democrático. Não
convém, por outro lado, confundir o triunfo da democracia com o triunfo do
mercado”.
Alain Finkielkraut, polêmico, conservador e
provocador filósofo francês de 75 anos, não disse isso ontem. Disse-o em 1991,
em uma entrevista à jornalista e escritora Rosa Freire D’Aguiar, em Paris. O
texto ficou guardado na gaveta da jornalista, até que ela o publicasse em seu
“Sempre Paris”, prêmio Jabuti de 2024 como livro do ano.
O que chama a atenção nas observações de Finkielkraut de 34 anos atrás é que elas poderiam ter sido feitas agora, num momento em que o país percebe a fragilidade de sua democracia quarentona.
Mas o que é democracia?
Em dois parágrafos, a inteligência artificial
dá a definição tradicional: é o sistema de governo no qual o poder emana do
povo de forma direta, por meio da participação ativa dos cidadãos em decisões
políticas, ou de forma indireta, por eleição de representantes. Esse regime
baseia-se em princípios fundamentais como a igualdade, a liberdade de
expressão, o respeito aos direitos humanos e o Estado de Direito. A soberania
popular é exercida por meio de eleições periódicas, garantindo que os
governantes estejam sujeitos à vontade da maioria, sem negligenciar os direitos
das minorias.
Além do aspecto político, diz a IA, a
democracia também envolve cultura de diálogo, transparência e participação
cívica, permitindo que diferentes setores da sociedade influenciem as políticas
públicas. Para funcionar de maneira eficaz são necessários sistema jurídico
independente, imprensa livre e instituições sólidas que assegurem o equilíbrio
entre os poderes.
As ressalvas feitas à democracia brasileira
por Finkielkraut aparecem também subentendidas na definição da IA. O Brasil não
é 100% democrático principalmente porque existe absurda desigualdade de renda e
isso impede a participação igualitária dos cidadãos na formulação de políticas
públicas.
Cerca de 63% das riquezas do país estão
concentradas nas mãos de 1% da população, um dos maiores índices de
desigualdade do mundo. Os 50% mais pobres detêm apenas 2% da riqueza nacional.
E, apesar dos avanços a partir do início deste século, 9,5 milhões ainda viviam
na extrema pobreza em 2023. Isso não é democracia.
Tenta-se ampliar esses avanços. Por exemplo,
aumentar a isenção de Imposto de Renda para ganhos mensais de até R$ 5 mil e a
taxação de super-ricos, mas há resistências fiscalistas. Enquanto isso, os
super-ricos pagam proporcionalmente menos imposto que a classe de renda média.
E bilhões de reais são oferecidos na forma de incentivos a vários setores
empresariais. Isso não é democracia.
O Brasil tem uma taxa básica de juros
elevadíssima, 13,25% ao ano, que amanhã deve subir para 14,25%. As
justificativas mais comuns dizem que o país tem dívida pública alta, o governo
gasta demais e precisa tomar dinheiro emprestado no mercado. Isso leva à
desconfiança dos investidores, que exigem juros mais altos para compensar o
risco de emprestar ao governo. O descontrole fiscal também eleva as
expectativas de inflação, que o Banco Central combate com o aumento dos juros.
Aceite-se ou não essa explicação, o fato é
que, na prática, os juros muito acima da inflação beneficiam os mais ricos e
rentistas, que não precisam trabalhar nem investir em negócios produtivos.
Vivem de renda financeira. Os mais pobres e os empreendedores pagam a conta ao
tomar dinheiro emprestado com taxas exorbitantes, de até 400% ao ano.
Aposentados, por exemplo, estão atolados em empréstimos consignados. Isso é
democracia?
Os mais pobres são as principais vítimas da
insegurança e da violência no país, em razão da desigualdade econômica e da
falta de acesso a serviços públicos. Em 2024, houve 38 mil mortes violentas
intencionais no país. A ausência do Estado nas comunidades periféricas facilita
a atuação de facções criminosas que recrutam jovens, impõem regras e tornam os
moradores reféns. Morreram 6 mil pessoas em operações policiais no ano passado.
Jovens pretos foram as principais vítimas. Isso não é democracia.
Houve 78 mil casos de estupros e violência
contra a mulher registrados em 2024. Roubos de celulares (quase 1 milhão de
casos notificados no ano passado) e fraudes cibernéticas se tornaram marca
nacional. Organizações criminosas expandiram sua atuação para um terço dos
municípios da Amazônia e controlam o mercado de drogas. Isso é democracia?
A absurda desigualdade de renda tem reflexos
em todas as áreas. Além de sofrer com insegurança, exposição à violência e
exclusão das bonanças financeiras, os excluídos têm difícil acesso a tratamento
de saúde (apesar do elogiado SUS), à educação de qualidade e ao lazer. Não
bastam programas de transferência de renda, cotas raciais e aumentos de salário
mínimo.
É claro que, por esses critérios, talvez
nenhum país seja 100% democrático, mas certamente uns são mais que outros. E os
absurdos que Finkielkraut viu no Brasil 34 anos atrás ainda estão aqui.
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