terça-feira, 18 de março de 2025

Por que nossa democracia quarentona não é total - Pedro Cafardo

Valor Econômico

Absurdos que Alain Finkielkraut viu no Brasil 34 anos atrás ainda estão aqui

Passados exatos 40 anos desde o fim da ditadura militar, o Brasil é hoje um país totalmente democrático? Vejam a opinião abaixo: “Estive no Brasil há dois anos. É claro que não se trata de um país totalitário nem de uma ditadura, mas nem por isso é democrático, apesar das eleições recentes. Um país onde podem reinar desigualdades tão tremendas, onde o preço da vida é pequeno, onde as regras mínimas de segurança não parecem respeitadas, onde alguns podem enriquecer à toda, enquanto outros vivem na miséria mais vergonhosa, para mim não é um país totalmente democrático. Não convém, por outro lado, confundir o triunfo da democracia com o triunfo do mercado”.

Alain Finkielkraut, polêmico, conservador e provocador filósofo francês de 75 anos, não disse isso ontem. Disse-o em 1991, em uma entrevista à jornalista e escritora Rosa Freire D’Aguiar, em Paris. O texto ficou guardado na gaveta da jornalista, até que ela o publicasse em seu “Sempre Paris”, prêmio Jabuti de 2024 como livro do ano.

O que chama a atenção nas observações de Finkielkraut de 34 anos atrás é que elas poderiam ter sido feitas agora, num momento em que o país percebe a fragilidade de sua democracia quarentona.

Mas o que é democracia?

Em dois parágrafos, a inteligência artificial dá a definição tradicional: é o sistema de governo no qual o poder emana do povo de forma direta, por meio da participação ativa dos cidadãos em decisões políticas, ou de forma indireta, por eleição de representantes. Esse regime baseia-se em princípios fundamentais como a igualdade, a liberdade de expressão, o respeito aos direitos humanos e o Estado de Direito. A soberania popular é exercida por meio de eleições periódicas, garantindo que os governantes estejam sujeitos à vontade da maioria, sem negligenciar os direitos das minorias.

Além do aspecto político, diz a IA, a democracia também envolve cultura de diálogo, transparência e participação cívica, permitindo que diferentes setores da sociedade influenciem as políticas públicas. Para funcionar de maneira eficaz são necessários sistema jurídico independente, imprensa livre e instituições sólidas que assegurem o equilíbrio entre os poderes.

As ressalvas feitas à democracia brasileira por Finkielkraut aparecem também subentendidas na definição da IA. O Brasil não é 100% democrático principalmente porque existe absurda desigualdade de renda e isso impede a participação igualitária dos cidadãos na formulação de políticas públicas.

Cerca de 63% das riquezas do país estão concentradas nas mãos de 1% da população, um dos maiores índices de desigualdade do mundo. Os 50% mais pobres detêm apenas 2% da riqueza nacional. E, apesar dos avanços a partir do início deste século, 9,5 milhões ainda viviam na extrema pobreza em 2023. Isso não é democracia.

Tenta-se ampliar esses avanços. Por exemplo, aumentar a isenção de Imposto de Renda para ganhos mensais de até R$ 5 mil e a taxação de super-ricos, mas há resistências fiscalistas. Enquanto isso, os super-ricos pagam proporcionalmente menos imposto que a classe de renda média. E bilhões de reais são oferecidos na forma de incentivos a vários setores empresariais. Isso não é democracia.

O Brasil tem uma taxa básica de juros elevadíssima, 13,25% ao ano, que amanhã deve subir para 14,25%. As justificativas mais comuns dizem que o país tem dívida pública alta, o governo gasta demais e precisa tomar dinheiro emprestado no mercado. Isso leva à desconfiança dos investidores, que exigem juros mais altos para compensar o risco de emprestar ao governo. O descontrole fiscal também eleva as expectativas de inflação, que o Banco Central combate com o aumento dos juros.

Aceite-se ou não essa explicação, o fato é que, na prática, os juros muito acima da inflação beneficiam os mais ricos e rentistas, que não precisam trabalhar nem investir em negócios produtivos. Vivem de renda financeira. Os mais pobres e os empreendedores pagam a conta ao tomar dinheiro emprestado com taxas exorbitantes, de até 400% ao ano. Aposentados, por exemplo, estão atolados em empréstimos consignados. Isso é democracia?

Os mais pobres são as principais vítimas da insegurança e da violência no país, em razão da desigualdade econômica e da falta de acesso a serviços públicos. Em 2024, houve 38 mil mortes violentas intencionais no país. A ausência do Estado nas comunidades periféricas facilita a atuação de facções criminosas que recrutam jovens, impõem regras e tornam os moradores reféns. Morreram 6 mil pessoas em operações policiais no ano passado. Jovens pretos foram as principais vítimas. Isso não é democracia.

Houve 78 mil casos de estupros e violência contra a mulher registrados em 2024. Roubos de celulares (quase 1 milhão de casos notificados no ano passado) e fraudes cibernéticas se tornaram marca nacional. Organizações criminosas expandiram sua atuação para um terço dos municípios da Amazônia e controlam o mercado de drogas. Isso é democracia?

A absurda desigualdade de renda tem reflexos em todas as áreas. Além de sofrer com insegurança, exposição à violência e exclusão das bonanças financeiras, os excluídos têm difícil acesso a tratamento de saúde (apesar do elogiado SUS), à educação de qualidade e ao lazer. Não bastam programas de transferência de renda, cotas raciais e aumentos de salário mínimo.

É claro que, por esses critérios, talvez nenhum país seja 100% democrático, mas certamente uns são mais que outros. E os absurdos que Finkielkraut viu no Brasil 34 anos atrás ainda estão aqui.

 

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