Folha de S. Paulo
Pacificação do país depende de que o lado
vitorioso saiba ter alguma generosidade
Nada prejudicou tanto a causa da anistia dos
presos de 8 de
janeiro quanto a manifestação centrada em Bolsonaro
no domingo em Copacabana. Há um evidente uso oportunista deles para
defender uma anistia
que já mira o ex-presidente. Da mesma forma, contudo, quem se recusa a
olhar para os presos do dia 8 sob o pretexto de criticar Bolsonaro perpetua uma
injustiça.
A ideia de que as invasões foram protagonizadas por "velhinhas de Bíblia
na mão" é um engodo —a maioria era homem e apenas 3,5% eram idosos.
Tampouco cabe dizer que seu único crime foi o vandalismo. Temos farta
documentação —inclusive vídeos e mensagens dos próprios— de que o que os levou
aos três Poderes era o plano de causar um tumulto tal que provocasse
intervenção militar e golpe de Estado.
Há quem diga que os invasores, embora
quisessem o golpe, não poderiam ser condenados porque se tratava de um crime
impossível; ou seja, seus atos não poderiam resultar no objetivo almejado. Se,
por exemplo, eu quisesse matar alguém e lançasse um feitiço, não estaria
cometendo crime. Era um plano desesperado o dos golpistas? Sem dúvida. Mas,
dado que tinham apoio e acompanhamento de diversos militares, inclusive
generais, não era impossível. Atentaram contra o Estado de Direito.
E, mesmo assim, algo não desce. Dezessete
anos —que foi o tempo de prisão que vários receberam — é pena que
muito assassino não recebe. Por mais que se defenda que derrubar a democracia é
pior do que matar uma pessoa —e que um golpe bem-sucedido resultaria em mortes—
, não tem cabimento atribuir esse peso todo a cada um dos invasores
individualmente, gente completamente fanatizada e sem noção da realidade.
Lembremos alguns fatos. Dos acampados na
frente dos quartéis saíam as mais insanas teorias: muitos juravam que Lula não
subiria a rampa do Planalto. Chegaram a comemorar com lágrimas uma imaginária
prisão de Alexandre de Moraes. Outros tinham certeza que Lula tinha morrido e
fora substituído por um ou mais sósias. Por fim, no próprio 8 de janeiro,
quando souberam que a Força Nacional de Segurança Pública se aproximava, muitos
dos invasores celebraram, crendo que era a sonhada "intervenção militar".
Foram presos na sequência.
Tudo isso para dizer: era gente manipulada que vivia de uma dieta tóxica de
fake news em grupo de WhatsApp. A
maioria bastante simples, metade tinha recebido auxílio emergencial. Cometeram
crimes e devem pagar por isso: mas foram a bucha de canhão do golpe e agora
recebem penas dignas de mandantes. Alguns, como a mulher que escreveu "Perdeu,
Mané" numa estátua, estão presos preventivamente até hoje aguardando
julgamento.
Existiam alternativas. Na condenação dos primeiros julgados, no plenário do
Supremo, dois votos apontavam a direção: Barroso e André
Mendonça argumentaram que os crimes de golpe de Estado e abolição
violenta do Estado de Direito deveriam ser aglutinados, resultando em penas
finais consideravelmente menores.
Não sei se a anistia tal como defendida pelos bolsonaristas é o caminho.
Certamente, teria que ser algo que exclua os mandantes. Mas o fato é que, por
um espírito de revanche do Supremo, pessoas simples receberam penas descomunais
para a realidade brasileira e isso cria uma situação insustentável, um assunto
que não vai embora. A pacificação do país, ademais, depende de que o lado agora
vitorioso saiba ter alguma generosidade.
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