As medidas tomadas ontem pelo governo contornaram o problema, mas não o resolveram. Ficou adiada a medida inescapável de acabar com o piso abaixo do qual os juros não podem cair. O adiamento da antipática e inevitável mudança do cálculo da caderneta de poupança vai custar R$ 3,5 bilhões ao Tesouro. O dinheiro será dado aos aplicadores dos fundos de investimento.
O governo escorregou ao escolher R$ 50 mil como o ponto do qual os poupadores da caderneta pagarão Imposto de Renda. O número é de triste memória.
Errou nas explicações confusas e em algumas justificativas rasas. Mas acertou a direção: o país tem mesmo que fazer mudanças que tornem possível a busca de juros cada vez mais baixos.
O ministro Guido Mantega disse que a taxação da poupança acima de R$ 50 mil estava sendo feita para proteger os pequenos poupadores dos “especuladores”. O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, foi mais sincero, mas incompleto.
Lembrou que a caderneta de poupança é um instrumento direcionado. O dinheiro financia operações no mercado imobiliário e, quando os bancos não conseguem aplicar, precisam recolher o excesso ao BC. Se todos fossem para a poupança — disse Meirelles — não haveria dinheiro para outros “empréstimos”.
A verdade completa é que faltariam recursos também para rolar a gigantesca dívida interna que lastreia outros ativos.
Meirelles admitiu que terá de haver outra etapa de mudanças “alguns anos à frente.” A remuneração fixa da poupança em TR mais 6,17% ao ano, o que dá hoje em torno de 7% a 7,5%, impede que os juros nominais caiam abaixo desse patamar. Segundo o presidente do BC, não fazer qualquer redução no imposto sobre fundos de investimentos agora seria criar desequilíbrios.
— E não podemos conviver com desequilíbrios até que a taxação da poupança possa vigorar no ano que vem — disse ele.
Ontem, como disse Mantega, o governo estava enfrentando o bom problema de ter que pensar no cenário de juros bem mais baixos, de um dígito e em queda.
O BC comemora também, até amanhã, os dez anos das metas de inflação. É inevitável lembrar as mudanças dessa década. Quando o sistema foi implantado, o Brasil vivia o tumulto da ruptura da política cambial de janeiro de 1999. A desvalorização ocorreu de forma abrupta e colocou em risco o Plano Real, o primeiro plano de estabilização que tivera sucesso. O tumulto cambial alimentou a crise política. O PT foi às ruas com o seu “Fora FHC”, com o José Dirceu à frente. O então presidente estava no início do segundo mandato, mas a explosão do câmbio derrubou sua popularidade. A oposição aproveitou a fraqueza.
As metas de inflação foram o mecanismo implantado pela equipe que Armínio Fraga levou para o BC. Ela substituiu uma medida de força, o controle do câmbio da primeira fase do Real, por uma forma mais sutil de administração das expectativas. As metas de inflação vinham sendo implantadas em vários países, com sucesso. Era a política certa para o Brasil? O economista Guido Mantega, então na oposição, garantiu que não. Em artigo publicado na “Folha de S.Paulo” fez ironia, disse que o “inflation targeting” era fruto da “irresistível fascinação pelos modelos de língua inglesa que desembarcam nos luxuosos gabinetes do BC e do Ministério da Fazenda.” Hoje ele ocupa esse “luxuoso” gabinete e pode comemorar o sucesso das metas de inflação.
Há dez anos, Mantega disse que as metas tinham “um potencial destrutivo menor do que a sobrevalorização” e que eram “uma estratégia tosca e inadequada para ancorar a política econômica.” Criticou, como costumava fazer na época, a equipe econômica que “erroneamente elege a inflação como principal problema do país.” E, de novo, defendeu a ideia de que o combate à inflação iria sacrificar o desenvolvimento.
As metas conseguiram segurar a inflação em 8,94% naquele ano e, no ano, seguinte, o país voltou a crescer — cresceu 4,3% — com uma inflação de 5,97%. Hoje, o governo Lula sabe que a continuidade da “tosca” política de metas de inflação foi providencial para atravessar outros períodos de turbulência.
Ontem, Mantega exultou diante de uma hipótese levantada por uma repórter: — Se a taxa de juros puder cair 3% será excelente.
De fato será. Mas só há esse cenário porque o país tem combatido a inflação cada vez que há risco de a taxa ficar acima da meta.
A estabilização do Brasil vem ocorrendo em etapas.
Tem sido um longo caminho.
Agora, o doce dilema é como fazer para abrir espaço para quedas pronunciadas e duradouras das taxas de juros.
Infelizmente, o ambiente político envenenado pelo debate sucessório impediu que governo e oposição vissem a oportunidade de alterar regras que ficaram obsoletas.
Então, foi feita uma meia sola: os fundos de investimento passarão a pagar menos impostos; as contas maiores de poupança pagarão Imposto de Renda. O contorcionismo incluiu uma MP que condicionará a queda da taxação à redução da taxa Selic; uma isenção para alguém hipotético que não tenha outra renda a não ser R$ 850 mil depositados na poupança; uma taxação escalonada para os maiores poupadores da caderneta.
Uma solução que terá que ser revista no futuro.
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