O atentado que matou no mínimo 130 pessoas e feriu outras 600 domingo em Bagdá, no maior ato terrorista dos últimos dois anos, no momento em que o governo dos Estados Unidos reafirma sua intenção de retirar suas tropas do Iraque após a realização de eleições em janeiro, não poderia ser mais eloquente do pouco avanço obtido nos últimos anos na superação do chamado “conflito de civilizações”, tragicamente explicitado nos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos.
O XX Colóquio da Academia da Latinidade que se realiza nestes dias no Cairo, para debater o fenômeno da retomada da força das religiões em contraponto à possibilidade de paz mundial, dá sequência à série de seminários internacionais iniciados dez anos atrás, quando a Academia foi criada para discutir justamente a questão do multiculturalismo dentro de um mundo já ameaçado pela hegemonia dos Estados Unidos.
Comandada pelo sociólogo e filósofo brasileiro Candido Mendes, seu secretáriogeral, a Academia da Latinidade reúne intelectuais, na maioria de países de origem latina, e se propõe a intermediar as relações do Ocidente com o Oriente, tendo como base o fortalecimento da democracia.
A França está representada nesta conferência, entre outros, pelo filósofo Edgar Morin; a Espanha por Frederico Mayor, ex-diretor-geral da Unesco e presidente da academia, e a Itália pelo filósofo Gianni Vátimo.
O programa Aliança das Civilizações das Nações Unidas, que tem no ex-presidente de Portugal Jorge Sampaio seu alto representante, faz parte desse seminário da Academia, e tem, na parte brasileira, o diplomata José Augusto Lindgren Alves.
A visão do mundo islâmico está representada, entre outros, pelo ex-secretário geral da ONU, o egípcio Boutros Boutros-Ghali, e palestrantes do nível do argelino Mohammed Arkoun, professor em Paris, considerado o maior especialista islâmico atual.
As conferências anteriores se alternaram entre todos os ângulos do problema islâmico. Os seminários foram realizados em locais como Alexandria e Ancara, no Egito, em Istambul, na Turquia, em Baku, no Azerbaijão, e na Jordânia. Por outro lado, houve reuniões no Rio de Janeiro, no Haiti, nos Estados Unidos e em Quito.
A ideia que originou a academia era poder enfrentar o diálogo com o mundo islâmico nas suas diversas vertentes: a do mundo iraniano, o que foi feito na conferência de Teerã (então em evidência com a crise envolvendo o enriquecimento de urânio pelo Irã, que se repete nos dias atuais); no mundo turco, e volta agora ao mundo árabe no Egito.
O sociólogo Candido Mendes lembra que se pensava, ainda ao fim do século passado, que o futuro fosse “o advento de uma modernidade cada vez mais ligada à expressão da tecnologia e da fruição múltipla de seus benefícios”.
Na sua interpretação, o 11 de setembro levou a um clima da guerra de credos onde, “ameaçadas no conflito das culturas, a ocidental e a islâmica se entrincheiraram na radicalidade fundamentalista em que à Al-Qaeda se contrapunha o cristianismo abrigado na Casa Branca de Bush e guarnecido das invasões do Afeganistão ou do Iraque”.
O terrorismo de após a queda das torres de Manhattan exprimiria, na visão de Candido Mendes, “essa confrontação extrema, até o abate dos outros povos, como vingança daquelas culturas expropriadas durante séculos, por uma razão dominadora, e travestida de civilização onipotente”.
Todo o programa, hoje, da Aliança das Civilizações, das Nações Unidas, diz Candido Mendes, ele próprio nomeado pela ONU embaixador para a Aliança das Civilizações, quer entender “as razões profundas dessas rupturas, num contraste assinalado com o que, ainda há uma década, se pensava fosse o universo da paz, vencidos afinal os muros, as guerras frias e o horror de uma hecatombe nuclear”.
Não basta, por outro lado, diz ele, atentarmos ao sentido convencional das “guerras de religião”, “na sequência desse terrorismo quase sacrifical, que leva ao paradoxo de um culto, em várias regiões muçulmanas, de Mohammed Hatta e seus s e q u a z e s , n a q u e d a d o WTC, como executores do castigo de Alá”.
A velha jihad se renovaria em novas violências, adverte Candido Mendes, “de que a Al-Qaeda seria o ator notório”, como parece ter acontecido agora em Bagdá, ou nos atentados de Madri ou de Londres, e da catástrofe de Lockerbee, cujo autor principal, liberado, recebeu triunfal acolhida em Trípoli.
O que importa nesse quadro, analisa o sociólogo brasileiro, é ver “como é que caminha esta pós-laicidade que enfrenta um antiarabismo dos Estados Unidos, da mesma forma que leva o mundo islâmico a ver os direitos humanos como uma ideologia ocidental”.
Para Candido Mendes, no quadro dos Estados religiosos, a partir do Irã, “o clamor por esses direitos desaparece nesta visão da transcendência, que envolve a ordem humana e divina, todo o Estado e a sua vigência”.
Candido Mendes dá especial atenção ao impacto da era Obama, “no inédito de um Império que volta às suas origens pela liberdade do voto, no restabelecimento da responsabilidade cidadã nos jogos de poder”.
O legado da laicidade, talvez perdida, está nessa democracia, diz Candido Mendes, “onde, à margem do absoluto religioso, impõe-se o respeito ao dissenso, à diferença, e ao peso das minorias no quadro de uma vontade política, e transformase na premissa do dificílimo reencontro de um visagrave;-vis das civilizações”.
Candido Mendes tem esperança de que, na busca do entendimento das “guerras de religião”, especialmente depois que ganhou o Prêmio Nobel da Paz, “o universo do medo encontre o atalho da era Obama, contra a eternização do terrorismo e das guerras preemptivas”.
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