sábado, 16 de julho de 2016

Parece loucura, mas tem método - Bolívar Lamounier*

- O Estado de S. Paulo

No Brasil, os intelectuais não se criticam mutuamente. Trata-se, ao que parece, de uma decorrência da exiguidade numérica: num grupo tão pequeno, questionamentos mútuos “não pegam bem”. Pode também ser um modus vivendi: como a maioria combina a atividade docente universitária com algum envolvimento político, cada um se sente no direito de fazer proselitismo partidário ou ideológico sem ser “incomodado” pelos demais.

Tal entendimento parece-me até certo ponto razoável, por duas razões: de um lado, nossa vida universitária nunca se pautou pelo estrito ascetismo outrora cultivado em algumas universidades do Primeiro Mundo; do outro, momentos cruciais da construção democrática brasileira exigiram uma defesa enfática da liberdade de cátedra, estreitamente associada à de expressão do pensamento. Fato, seja como for, é que entre nós o debate aberto e por vezes contundente que se observa nos países academicamente adiantados nunca se desenvolveu.

Ao contrário dos Estados Unidos, por exemplo, onde as revistas especializadas e mesmo alguns jornais, como The New York Review of Books, regularmente publicam resenhas sérias dos novos lançamentos editoriais, no Brasil resenhar é quase sinônimo de elogiar. Essa tradição, que remonta à época nada gloriosa dos catedráticos medalhões, afigura-se esdrúxula nos dias de hoje, com o regime democrático em pleno desenvolvimento, tendo os intelectuais um papel sabidamente importante na formação da opinião pública e cada cidadão querendo saber onde vai parar o dinheiro dos impostos que paga.

Fiz as observações acima instigado por declarações da doutora Marilena Chaui, professora titular de Filosofia da Universidade de São Paulo. Farei referência a três episódios: um, de dez anos atrás, associado ao “mensalão”; outro, de 2012, em que ela disse cobras e lagartos sobre a classe média brasileira; e um recente, a respeito da Operação Lava Jato e do juiz Sergio Moro.

Na primeira, contestando a veracidade das acusações referentes à compra de apoio no Congresso pelo PT, a professora Chaui interpretou-as, bem à maneira das chamadas “teorias conspiratórias”, como uma campanha difamatória urdida pela mídia, que se teria comportado como uma elite coesa. Em 2012, num evento organizado, se bem me lembro, por seu partido, num tom inusitadamente exaltado, ela declarou odiar a classe média. “Odeio-a”, especificou, “porque é ignorante e fascista”. Na mais recente, disse que os inquéritos em andamento nada têm que ver com combate à corrupção, tratar-se-ia de uma operação estrangeira (norte-americana, presumo) cujo real objetivo seria “tirar-nos o pré-sal”, hipótese ao ver dela comprovada pelo fato de o juiz Sergio Moro ter sido “treinado pelo FBI”.

A questão, como se vê, é como a comunidade intelectual – cuja segmentação ideológica tive o cuidado de ressaltar acima – reage a tais declarações. Podem elas ser aceitas como expressões normais de um determinado ponto de vista ideológico ou extrapolam tal âmbito, a ponto de merecerem alguma crítica? É óbvio que não tenho procuração para falar por outros integrantes de tal comunidade – e muito menos interesse em fazê-lo. Falo por mim.

Quanto a conspirações de elite, sou forçado a perguntar se a professora Chaui ponderou devidamente as companhias a que se reuniu ao abraçar esse tipo de teoria. Falo, naturalmente, dos Protocolos dos Sábios de Sião, cânone da virulência antissemita, da acusação, também falsa e antissemita, contra o capitão Dreyfus; e mesmo da peça também falsa e antissemita, denominada Plano Cohen, obra do então coronel Olímpio Mourão Filho, produzida na antevéspera do autogolpe getulista de 1937. Quem pensa dessa forma vê conspirações por todo lado, tramadas ora pela mídia, ora pelos judeus, ora pelo imperialismo. Karl Popper discute essa questão em seu celebrado livro A Sociedade Aberta e seus Inimigos: “Não afirmo que conspirações nunca acontecem. Ao contrário, elas são fenômenos sociais comuns. (Mas) tornam-se importantes, por exemplo, quando pessoas que acreditam em teorias conspiratórias – principalmente pessoas que acreditam saber como criar um paraíso na terra – chegam ao poder e se engajam em contraconspirações contra inexistentes conspiradores. Porque precisam explicar seu fracasso em produzir o almejado paraíso”.

Provavelmente por não ter-se debruçado sobre os problemas acima mencionados, Marilena Chaui recai na teoria conspiratória ao falar da Lava Jato, apenas substituindo a elite oculta do mensalão pelo imperialismo e pelo juiz Sergio Moro; e o mais pitoresco é que, no petrolão, houve de fato uma elite conspiratória: um conluio de grandes empreiteiros com altos agentes dos governos Lula e Dilma.

Em sua invectiva contra a classe média, não é mais a uma elite oculta que Marilena Chauí se refere, mas há um elemento comum importante a ressaltar. A ilustre filósofa ter-se-ia expressado melhor, com mais atenção à diversidade do fenômeno de que tratou, se tivesse lido Who Voted for Hitler?, de Richard F. Hamilton, mas esse não é seu método de trabalho. Ela presume, simplesmente, a existência de uma “pequena burguesia”, uma camada social homogeneamente ignorante e fascista.

Apesar de sua brilhante trajetória como professora de Filosofia, ela não vê dificuldade em atribuir determinados traços a esse coletivo abstrato e hipostasiado que é sua “classe média”. O mais curioso é ela ter declarado isso justo quando o governo petista trombeteava a entrada do Brasil no seleto grupo dos países “de classe média”. Graças a suas políticas sociais, mais de 50% da população brasileira teria ascendido ao paraíso dos ignorantes e fascistas.
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Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro da Academia Paulista de Letras

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