domingo, 24 de março de 2019

Míriam Leitão: O exagero que derruba a tese

- O Globo

Paulo Guedes tem sólida formação intelectual, mas recorre a exageros para defender suas teses e aceita ideias que não caem bem a um liberal

O ministro Paulo Guedes seria mais convincente se não exagerasse nos números, cálculos e versões para confirmar seu ponto. Ele tem argumentos fortes que independem de distorção superlativa. Quando for à Câmara falar da reforma, seria bom que ele evitasse o que fez na sua eloquente e fluente fala nos Estados Unidos. Guedes disse em Washington que o Brasil foi governado 30 anos pela esquerda. Foram 13, na verdade. Os 30 anos incluiriam até José Sarney, Collor e Temer. Ele diz que nenhum presidente teve coragem de enfrentar a crise fiscal, mas o país teve 16 anos de superávit primário e tem a Lei de Responsabilidade Fiscal.

O fato de o Brasil estar desde 2014 com déficit primário é grave. Torçamos para que ele nos leve de volta ao superávit. Se ele quiser dizer que o presidente Bolsonaro terá a coragem de enfrentar o déficit, seria ótimo se o fizesse em bom português. Não precisa usar uma linguagem chula que transforma coragem em sinônimo de parte da anatomia sexual masculina. Isso não pegou bem nos Estados Unidos, uma sociedade aberta, na qual as mulheres têm cada vez mais poder, inclusive no mundo corporativo. Isso não pega bem no Brasil.

O ministro Paulo Guedes está correto em dizer que durante as últimas décadas o total do gasto público como percentual do PIB cresceu ano após ano. A democracia atendeu às demandas sociais represadas, mas também errou ao distribuir benesses a grupos corporativistas. A dívida aumentou no governo de Fernando Henrique porque ele colocou na contabilidade explícita o que durante a ditadura estava fora das estatísticas. Eram os chamados esqueletos. Os números têm história.

Todos os governos fizeram mudanças na Previdência. A reforma do ex-presidente Lula reduziu alguns privilégios no setor público, como o fim da paridade e integralidade para servidor civil. Agora será a vez de Jair Bolsonaro. Ele não é o primeiro e, ao contrário do que o ministro Guedes disse nos Estados Unidos, a reforma não acabará com privilégios. Vai de novo apenas reduzi-los em alguns pontos, e até elevar, no caso dos militares.

A insistência em agradar o chefe e afinar o discurso com a ala mais radical levou o ministro no discurso da Câmara Americana de Comércio a fazer seguidas críticas à mídia. Colocou-a como exemplo dos perdedores que, segundo ele, divulgam uma imagem falsa do presidente. E disse que a mídia “se encantou com o establishment”. Equívoco. Quem cobriu sistemática e intensamente os casos de corrupção no Brasil foram os grandes órgãos de imprensa. E o fizeram sem poupar qualquer lado envolvido. O processo virtuoso de enfrentamento da corrupção não é obra do presidente Bolsonaro, mas sim do Ministério Público, Polícia Federal e Justiça, e a eles a mídia brasileira, forte e independente, deu total cobertura ampliando o alcance das informações.

Ao tecer loas aos Estados Unidos, Paulo Guedes elogiou a abertura do comércio americano. Os Estados Unidos são um país de economia aberta, um pouco menos agora com o presidente Trump. Da perspectiva do Brasil, essa abertura tem falhas. Trump impôs sobretaxa e cotas às exportações brasileiras de produtos siderúrgicos. Depois, criou a possibilidade de contornar o bloqueio, mas houve aumento na burocracia. Eles subsidiam produtos agrícolas fortemente, como a soja, e isso restringe a entrada do Brasil em terceiros mercados.

Exemplo de exagero nefasto foi proclamar Olavo de Carvalho o “líder da revolução”. Não há uma revolução em curso. Não é bom para o próprio ministro perfilar-se no grupo dos aduladores de Olavo. Não é justo com ele mesmo, Guedes, que tem autonomia intelectual. Não faz bem entrar numa briga intestina, da qual deveria guardar distância. Se é para ter um lado, é o do grupo mais racional.

Na cena política reescrita por Paulo Guedes, está havendo no Brasil uma união perfeita de liberais e conservadores para derrotar os tais “30 anos” de esquerda no Brasil. Um liberal como ele é, de convicções firmes e antiga coerência, não pode estar confortável com um discurso tão iliberal quanto o que impera em certas áreas do governo, com o tom de caça aos hereges em diversas áreas, a repressão a professores, as teses retrógradas sobre mulheres e até a censura à educação sexual infantil. Um liberal de boa cepa não convive com tanto obscurantismo e isso ele pode conferir se revisitar os clássicos que formaram seu pensamento.

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