- Folha de S. Paulo
A literatura de Rubem Fonseca é um mapa geográfico e humano do Rio
Ao fim da pandemia, eu quero ser o Epifânio. É o personagem esquisitão do conto “A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro”, com que Rubem Fonseca —o Prêmio Camões que morreu na quarta-feira (15), aos 94 anos— atualiza o clássico “Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro”, de Joaquim Manuel de Macedo, e do qual tira a epígrafe terrível e atual: “Em uma palavra, a desmoralização era geral”.
Epifânio mora num sobrado, em cima de uma chapelaria feminina, na rua Sete de Setembro, no velho Centro, e anda nas ruas o dia inteiro e parte da noite. Acredita que ao caminhar pensa melhor e encontra soluções para seus problemas. Olha com atenção tudo o que pode ser visto: fachadas, telhados, portas, janelas, latas de lixo, bueiros, passarinhos bebendo água nas poças, o cinema que é ocupado pela igreja Jesus Salvador das Almas —como a fixar uma cidade que por milagre ainda existe, mas vai desaparecendo, ou se transformando em outra.
Visionário, o personagem ensina o caminho das pedras: você segue até o largo de Santa Rita, onde termina e começa a Marechal Floriano, vai até a rua dos Andradas, entra na Júlia Lopes de Almeida, segue até chegar à Senador Pompeu, entra pela direita numa travessa e, pronto, chega à rua do Jogo da Bola.
Na rua do Teatro, ele para e fica olhando para o último andar de um edifício. Logo outras pessoas se juntam em torno dele, ficam também olhando para o alto e perguntam: “Que foi? Ele já pulou?”. Nesse momento é como se Epifânio, por vontade própria, se transmudasse para outro relato do escritor, “A Força Humana”, no qual uma pequena multidão se posta em frente a uma loja de discos para ver um homem sambar. A literatura de Rubem Fonseca é um mapa geográfico e humano do Rio.
O bater pernas de Epifânio termina na rua do Ouvidor, direção do mar. Aonde também eu quero chegar, assim que puder. De longe, já dá para sentir o cheiro.
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