O Estado de S. Paulo
Um ser humano, sobretudo na hora da morte, merece de nós a nossa melhor expressão de respeito
O falecimento do escritor Olavo de
Carvalho, na terça-feira, repercutiu nas redes sociais de um modo carnavalesco,
brincalhão, satírico e apavorante. Uma avalanche de festejos virtuais fez da
notícia fúnebre uma festa popular, como quando as torcidas comemoram a vitória
do seu time num desses certames futebolísticos. Anedotas floresciam em toda
parte, das mais chulas às mais elaboradas. Uns se divertiam com a boutade de
que a onda de calor destes dias se deve à porta do inferno, escancarada para
receber o novo inquilino. Outros preferiram replicar o post segundo o qual o
morto, ao se instalar no endereço escaldante, havia declarado que o inferno é
plano. Os mais líricos recuperaram um poema famoso do uruguaio Mario Benedetti,
escrito em 1963, chamado Obituário com hurras: “Murió el cretino / vamos a
festejarlo”. Por muitas horas, o escárnio divertido, espirituoso e ácido
manteve seu ânimo. E foi isso, apenas isso, que me soou apavorante (esta é a
palavra). Se a morte de alguém, seja esse alguém quem for, é motivo para o
nosso regozijo mais ostensivo, a que teremos nos reduzido?
É claro que a minha percepção individual não pode ser generalizada. Aliás, nada aqui se pretende generalizante. Quando falo em redes sociais, estou me referindo apenas ao que delas posso ver ou saber, ou seja, falo de recortes exíguos e franjas infinitesimais de uma superindústria inapreensível. Olho as redes mais ou menos como os mendigos que viam televisão em frente às vitrines do Mappin. Eu as observo pelo lado de fora. Mesmo assim, mesmo vendo tão pouco, não gostei de ver a bolha que orbito exultando copiosamente porque alguém morreu.
Em outras bolhas, com as quais me
identifico menos ainda, proliferaram homenagens hagiográficas ao falecido. Não
primaram pela sobriedade. Em nota conjunta, a Secretaria Especial da Cultura e
a Secretaria Especial de Comunicação Social afirmaram que ele deixa um legado
de “contribuição inestimável ao pensamento filosófico e ao conhecimento
universal”. Haja grandiloquência governamental. Procurando inflar com
artifícios rasteiros a magnitude da obra alegadamente filosófica do escritor, o
texto constrange, como se também tivesse a estrutura de uma piada, desta vez
involuntária. O chefe de Estado decretou luto oficial de um dia.
Entre uns e outros, Olavo de Carvalho
morreu como signo em disputa. O que se pode dizer, objetivamente, é que ele
contribuiu para conferir amálgama discursivo para aglutinações (coagulações) de
forças contrárias à democracia no Brasil, tecendo um fio de amarração
ideológica que se estende dos estertores da ditadura militar (especialmente da
banda mais fascista do regime, aquela que se opôs agressivamente contra a
abertura política liderada por Ernesto Geisel) até as entranhas do credo bolsonarista
atual. Os textos de Carvalho, bem como seu intenso proselitismo na internet,
contribuíram para sintetizar uma unidade que poderíamos chamar de
protoconceitual para a verbosidade violenta das milícias digitais. São elas que
agora o cultuam como um totem inexpugnável e oco.
Para outras bolhas, as que debocham de seu
funeral, o morto terá sido uma fraude intelectual a ser desbaratada e
esquecida. Pode ser que exista razão no diagnóstico, mas a atitude de tripudiar
sobre o caixão ainda insepulto passa da conta.
A essa altura, não há sentido em cobrar
boas maneiras de quem quer que seja – e, de minha parte, seria um embuste eu
presumir que possa ter comigo a baliza da urbanidade. Não tenho essa pretensão.
Meu ponto é um só: registrar o fato, terrivelmente incômodo, de que as
expressões de ódio (como essa que caçoa do sepultamento do adversário) se
alastraram horizontalmente, a ponto de se tornar um denominador comum da
linguagem política. Tenho a impressão de que o ódio, ou alguma parte dele,
parte essencial, já nos subjugou a todos. O pior é não haver o que fazer, não
há como reverter o quadro, e isso é o que mais apavora.
A gente sabe que os tiranos, quando morrem,
viram objeto do nojo popular. O cadáver de Mussolini ficou exposto à fúria dos
populares em Milão, em 1945. Foi chutado e levou cusparadas. Depois disso, no
entanto, a civilização, pelos trilhos da democracia, ergue barreiras que
sublimam a fúria legítima em justiça e, depois, assenta a justiça em paz. Na
Normandia, os soldados alemães que combatiam pelo nazismo jazem no Cemitério de
La Cambe, sem que seus túmulos sejam profanados. Tem de ser assim. Se não
sabemos nos deter diante do limite da morte, não somos civilizados.
O bolsonarismo já deu todos os sinais de
que despreza a vida, os direitos e as liberdades. Seu líder máximo zombou
muitas vezes dos que morreram de covid. Isso é deplorável e indigno. Mas os que
se opõem a essa escola odiosa nunca deveriam ceder ao mesmo padrão de ódio.
Deveríamos ser os primeiros a saber que, no fundo de cada crápula, ainda tenta
respirar um ser humano. Deveríamos saber que esse ser humano, sobretudo na hora
da morte, merece de nós a nossa melhor expressão de respeito.
*JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP
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