Correio Braziliense
Para 59% da população, sabotou a
imunização. Esse resultado, obviamente, terá sérias consequências
eleitorais; 81% são a favor da exigência do “passaporte de vacina” em
locais fechados
No começo do século passado, por uma série
de razões, houve uma grande revolta popular no Rio de Janeiro contra a
vacinação da população. O episódio, porém, é um marco contra a ignorância e o
negacionismo da ciência. Àquela época, a antiga capital era uma cidade
insalubre, em péssimas condições de saúde pública, na qual proliferavam doenças
contagiosas: tuberculose, peste bubônica, febre amarela, varíola, malária,
tifo, cólera etc. O presidente Rodrigues Alves resolveu realizar uma série de
reformas urbanas para melhorar as condições de vida da então capital, a cargo
do engenheiro Pereira Passo, que alargou ruas e removeu cortiços, desalojando a
população; o mais miserável. Diretor-geral de Saúde Pública desde 1903, o
médico Oswaldo Cruz assumiu o cargo com a missão de implementar o saneamento
público e erradicar a febre amarela, a peste bubônica e a varíola,
principalmente.
Com essa intenção, em 1904, o governo propôs a obrigatoriedade da vacinação, lei aprovada em 31 de outubro, apesar dos protestos, inclusive um abaixo-assinado com 18 mil assinaturas, muito para aquela época. A lei exigia comprovantes de vacinação para realizar matrículas nas escolas, assim como para obtenção de empregos, viagens, hospedagens e casamentos. Previa multas para quem não se vacinasse. O povo se revoltou, estimulado pelos políticos de oposição. A confusão começou no Largo do São Francisco e se espalhou de Copacabana ao Engenho Novo, com quebra-quebras, tiros, barricadas. O saldo foi de 945 pessoas na Ilha de Cobras, 30 mortos, 110 feridos e 461 deportações para o estado do Acre. Historiadores avaliam que a política higienista e a forma autoritária como foi imposta a vacinação causaram a revolta, além do fato de que a vacinação de mulheres era vista como uma ameaça à honra machista.
Quase 120 anos depois, a vacinação em massa
no Brasil é uma política de saúde pública muito bem-sucedida. É resultado de
muitas campanhas de vacinação, entre as quais se destacam: (1) a campanha
contra a meningite na década de 1970, quando uma epidemia matou milhares de
crianças e o então regime militar tentou escondê-la; e (2) a campanha contra a
poliomielite, que praticamente erradicou a paralisia infantil, porém, na década
de 1980, foi objeto de uma grande polêmica entre o general João Batista
Figueiredo e o criador da vacina, Albert Sabin, por causa da subnotificação dos
casos de poliomielite. Ontem, o DataFolha divulgou pesquisa de opinião
amplamente favorável à vacinação contra a covid-19, inclusive das crianças. É
uma vitória do Sistema Único de Saúde (SUS) e do nosso modelo federativo, que
neutralizou a desastrada política do Ministério da Saúde, graças à atuação de
governadores e prefeitos. Estão com vacinação completa 75% da população.
Donas de casa
Os números também são acachapantes contra o
negacionismo do presidente Jair Bolsonaro, que até hoje não se vacinou e não
pretende imunizar a filha de 11 anos: 81% dos entrevistados são a favor da
exigência do “passaporte de vacina” para que seja liberada a entrada em locais
fechados como bares, restaurantes e órgãos públicos, entre outros. Apenas 18%
são contra a exigência do comprovante, e 1% não soube responder. Os mais
favoráveis ao passaporte são mulheres (87%), pessoas com mais de 60 anos (87%),
com ensino fundamental completo (86%) e aqueles que ganham até dois salários
mínimos por mês (85%). Os maiores grupos negacionistas estão estre os homens
(24%), pessoas de 25 a 34 anos (22%) e aqueles que têm renda mensal de mais de
10 salários mínimos (28%). No Sudeste, 84% são favoráveis à medida; no Sul,
75%. As donas de casa (90%) são as mais entusiastas da vacinação; entre as
empresárias, 60%.
Como a oposição a Rodrigues Alves e Oswaldo
Cruz, Bolsonaro perdeu a guerra da vacina. Para 59% da população, sabotou a
imunização. Esse resultado, obviamente, terá sérias consequências eleitorais, mesmo
com a resiliência dos setores que apoiam tudo o que Bolsonaro propõe, inclusive
quando afronta o “bom senso”. Nesse aspecto, a vacinação deve ser objeto de uma
reflexão política mais ampla, que nos remete ao comportamento da maioria da
população. De certo modo, na eleição de 2018, Bolsonaro explorou com muito
êxito o “senso comum” da maioria dos eleitores em relação à crise ética que
atingia em cheio o nosso sistema político, sobretudo os partidos.
Há uma grande diferença, porém, entre
“senso comum” e “bom senso”. O primeiro é uma postura passiva e acomodada, que
segue critérios, comportamentos e modos de agir tradicionais na sociedade.
Bolsonaro soube usá-lo com maestria, principalmente nos temas relacionados à
mudança de costumes e à defesa da família unicelular patriarcal. O “bom senso”,
ao contrário, leva ao reposicionamento crítico, porque resulta de certa
sabedoria popular e de uma compreensão da realidade tal como ela é, como o das
donas de casa ouvidas na pesquisa. Não resulta de conclusões de caráter
ideológico, por exemplo. Quando confrontou o bom senso da sociedade, Bolsonaro
perdeu a guerra.
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