O Estado de S. Paulo
Mais do que escolhas ideológicas, o
exercício do poder parece refletir a experiência de vida de cada um.
O antigo adágio de inspiração
aristotélica, operari sequitur esse (o atuar segue o ser), continua
plenamente vigente na política brasileira. Ao menos em relação aos presidentes
da República neste século, não há nenhum motivo para surpresa. Todos eles – Fernando
Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e
Jair Bolsonaro, até aqui – foram rigorosamente coerentes com sua história de
vida prévia ao cargo. O poder não mudou nenhum deles.
Mais do que escolhas político-ideológicas, o
modo como cada um exerceu o poder parece refletir, com surpreendente exatidão,
sua respectiva formação profissional e humana, sua experiência de vida, sua
bagagem cultural. Sociólogo, o presidente Fernando Henrique teve uma especial
percepção dos temas de longo prazo do País e fez deles a prioridade de seu
governo. É um perfil de governante muito necessário, cujos frutos podem ser
observados décadas depois, mas raro em democracias de massa. Não é nada fácil
que a maioria do eleitorado abrace uma proposta de governo não imediatista.
Mais um mérito, portanto, do Plano Real: não apenas acabou com a inflação, como
forneceu as condições políticas para a eleição de alguém cujo olhar tende a ver
além do próprio mandato.
Líder sindical, o presidente Lula teve uma excepcional percepção das questões com impacto imediato na vida da população, bem como dos interesses políticos vigentes no período. Soube construir, tal como havia feito durante toda a sua vida sindical, um governo de composição, agregando forças políticas muito díspares. Sendo a política não apenas futuro, mas presente, com Lula, o cidadão sentiu-se cuidado pelo governo federal de uma forma nova.
Economista de matriz desenvolvimentista e
com uma vida dedicada a causas políticas, a presidente Dilma manifestou um
raríssimo compromisso partidário no exercício do poder. No Palácio do Planalto,
fez o que sempre havia feito ao longo de sua vida: fidelidade e entrega
incansáveis às ideias do estatuto do seu grupo político, sem medo das críticas
e dos eventuais riscos políticos.
Professor de Direito Constitucional e com
uma vida voltada à negociação política, o presidente Temer captou
extraordinariamente os limites e possibilidades do cargo de presidente. E soube
ampliar essas possibilidades por meio de uma estreita relação com o
Legislativo. Seus dois anos e meio na Presidência da República foram estrita
continuidade de sua vida política no Congresso.
De igual forma, os três anos e meio do
presidente Bolsonaro podem ser vistos como fidedigna expressão do que sempre
foi Jair Bolsonaro. Não há motivo para perplexidade. Suas ideias e métodos
continuam exatamente os mesmos. Mudaram as circunstâncias e o alcance de suas
ações.
Engana-se quem pensa em Jair Bolsonaro como
um capitão do Exército. Certamente, sua vivência no meio militar, nos anos da
ditadura, o influenciou, mas ele nunca atuou de fato como um militar, nem no
Congresso nem durante o período em que esteve no Exército. Na avaliação de
Ernesto Geisel, Jair Bolsonaro foi um “mau militar”. O paradoxo não é trivial:
aquele que utilizou e utiliza politicamente o saudosismo da ditadura foi sempre
desprezado pelas lideranças do regime militar.
A distância entre o comportamento das
Forças Armadas e o de Jair Bolsonaro ficou nítida, por exemplo, na pandemia. Os
militares entenderam os riscos da covid e atuaram em consequência. Mais do que
um tema de saúde pública, Bolsonaro viu na emergência sanitária uma questão de
sobrevivência política. Convicto de que a oposição usaria a pandemia para
tentar derrubá-lo do poder, optou por negar a gravidade da covid. Quando isso
era impossível, tratou a doença como um destino inevitável.
Esse olhar peculiar reflete a história de
Jair Bolsonaro antes da Presidência da República. Mais, expressa sua
identidade: ele sempre foi um lobo solitário da política. Sem recursos, sem um
sobrenome conhecido e sem vínculos políticos, sua vida pública foi
invariavelmente uma construção individual. Sob essa perspectiva, por mais alto
que se possa chegar, nada é estável. A tensão é contínua. Não há espaço para a
confiança, mesmo entre os mais próximos. A primeira alternativa é sempre o
ataque.
No Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro
mantém o mesmo comportamento dos anos 80 do século passado: testa ações que
capturem a pauta pública e lhe deem visibilidade. Antes, anunciava que
explodiria bombas em quartel; agora, ameaça o processo eleitoral. Por seguir
essa tática, foi preso no Exército. Por insistir na mesma tática, chegou ao
Congresso e, anos depois, ao Palácio do Planalto. Por que iria parar com ela
agora, justamente quando tem mais audiência? Só a interrompe quando está no
limite da sobrevivência política, como ocorreu no dia 9 de setembro de 2021.
Neste ano eleitoral, analisar a história
dos possíveis candidatos – e como ela influenciou a estrutura mental de cada um
– pode evitar surpresas. Também ajuda a vislumbrar, de forma um pouco mais
concreta, o que nos espera nos próximos meses. Operari sequitur esse.
*Advogado e jornalista
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