terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Andrea Jubé - Um filósofo no Ministério da Fazenda

Valor Econômico

Haddad diz que teve “a melhor relação com o Congresso”

Em maio, na pré-campanha ao governo de São Paulo, quando lançou o livro “O Terceiro Excluído - Contribuição para uma Antropologia Dialética”, o ex-prefeito e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Haddad foi alvo de críticas internas no PT por se dedicar à produção de uma obra acadêmica, quando, na percepção dos aliados, deveria estar em campo, pedindo votos nas periferias.

Na introdução da obra, o ex-prefeito de São Paulo antecipou-se às críticas, alegando que desejou contribuir para o debate coletivo, num cenário de negacionismo sistêmico, diversionismo e “fake news” como estratégias políticas. “Diante do achatamento brutal do debate público no país, o meu ímpeto foi o de seguir na direção oposta, da reflexão e do aprofundamento”.

Advogado formado no Largo de São Francisco (USP) e mestre em economia, Haddad é doutor em filosofia, com uma tese sobre o teórico alemão Jürgen Habermas, da Escola de Frankfurt. “O Terceiro Excluído” começou a ser escrito logo após a derrota para Jair Bolsonaro em 2018. Na definição da psicanalista Vera Iaconelli, foi essa a reação do político ao trauma da derrota: uma obra científica. Um franco contraponto ao comportamento do presidente Bolsonaro, que desde o resultado das urnas, recolheu-se em silêncio tonitruante, incensando de forma velada os atos antidemocráticos que se perpetuam na frente dos quartéis.

O livro de Haddad é de difícil compreensão para os leitores comuns, mas abre frestas sobre as ideias do economista-filósofo sobre economia e justiça social. O autor vale-se de conceitos contemporâneos da biologia, antropologia e linguística para propor uma revisão do materialismo histórico, que tem em Karl Marx (1818-1883) seu expoente.

A pesquisa ganhou abrangência após uma conversa com o linguista Noam Chomsky, ativista dos direitos humanos e professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), com quem esteve em setembro de 2018, às vésperas da eleição. Em pauta, as barreiras da linguagem, a incomunicabilidade nos tempos atuais, o avanço da extrema direita em países como Brasil, França e nos Estados Unidos, na era Trump.

No livro, Haddad explica que a “lei do terceiro excluído”, premissa do campo filosófico, estabelece que a contradição não existe e a ausência da contradição leva ao estranhamento, ou ao “infamiliar” - tradução de um termo extraído de um texto clássico de Freud. Um drama que a sociedade brasileira experimenta diante do radicalismo político, que inviabilizou o diálogo entre os que pensam de forma distinta.

Para ilustrar a ideia do “terceiro excluído”, Haddad recorre à escravidão. “A consequência política é o reconhecimento dessa força que vem nos levando historicamente para a opressão dos humanos que não se reconhecem”, afirmou, em debate online promovido pela Editora Zahar, que publicou o livro. “Pense na escravidão que durou quase 10 mil anos. E não estou falando de 100 anos, que já seria muito. São 10 mil anos, como você estabiliza essa relação de subjugação? Ou a relação patriarcal, ou o pensamento racista?”, provocou.

Para Haddad, o que está em disputa é uma concepção de sociedade, com espaço para o avanço das forças de extrema direita, que tendem a excluir os “estranhos”. No mesmo debate virtual, Haddad argumentou que nas maiores crises econômicas mundiais, como em 1929 e 2008, esse cenário propiciou a ascensão do fascismo em vários países. E a base comum dessa força política era “transformar o outro em algo indesejável”.

Em síntese, as ideias expostas pelo futuro ministro da Fazenda na obra em questão sugerem que ele poderá levar para seu campo de atuação propostas de enfrentamento à desigualdade social e de inclusão social. “O livro é teórico, mas a partir dele, se permite uma agenda política complexa e abrangente”, afirmou o autor, no mesmo debate online.

Nesta terça-feira, Fernando Haddad concederá a primeira entrevista desde que sua indicação para a pasta da Fazenda foi formalizada pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Em manifestações recentes, ele adiantou que vai trabalhar pela reforma tributária e por uma nova âncora fiscal.

Nos bastidores, uma ala de petistas receia que o perfil intelectual do ministro o distancie da “realpolitik” que caracteriza as relações do Congresso. Há temor de que ele não abra o gabinete para receber deputados e senadores e reunir-se com as bancadas estaduais e dos partidos.

O secretário-geral do PT, deputado Paulo Teixeira (SP), um dos quadros mais próximos de Haddad, assegura que o futuro ministro terá “boa interlocução” com o Congresso. Em conversa com a coluna, o próprio Haddad afastou esse temor: “tive a melhor relação com o Congresso como ministro [da Educação], aprovamos todos os projetos”, relembrou. De fato, ele articulou pessoalmente a aprovação da polêmica Lei de Cotas nas universidades públicas há cerca de dez anos.

Filósofo no universo acadêmico, Haddad tem os pés no chão na seara econômica. Exerceu a economia na boca do caixa, ao trabalhar durante anos ao lado do pai no comércio atacadista. Ao migrar do direito para a economia, atuou no ramo imobiliário e como analista de investimentos. No fim dos anos 1990, idealizou e executou o projeto que culminou na Tabela Fipe. Como prefeito, obteve grau de investimento para a Prefeitura de São Paulo. Tem afirmado que executou a maior parceria público-privada (PPP) do país na forma do Prouni, programa de isenções fiscais em troca de bolsas em instituições de ensino privadas. Tal qual a trajetória multidisciplinar que percorreu na academia, como ministro da Fazenda, Haddad tentará concretizar o desafio de conjugar responsabilidade fiscal com o “horizonte utópico”, de que trata no livro, de uma sociedade menos desigual e com inclusão social.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Excelente artigo,Haddad é o cara.