sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Maria Cristina Fernandes - A eleição da realidade paralela

Valor Econômico

Uso da inteligência artificial nas disputas eleitorais da Eslováquia, Argentina e EUA mostra o que aguarda as eleições municipais, embate que colocará em xeque a superação do bolsonarismo

Dois dias antes da acirrada eleição na Eslováquia, em outubro do ano passado, o Facebook divulgou um áudio em que o candidato do partido pró-Otan contava a uma jornalista que seu partido comprara votos da minoria cigana do país. As vozes, falsas, foram produzidas por inteligência artificial. O episódio mostrou a vulnerabilidade não apenas do candidato mas da jornalista à ferramenta.

Ambos denunciaram o áudio de imediato, mas como a política da Meta, dona do Facebook, é de excluir apenas vídeos - e não áudios -, a peça publicitária se espalhou até o dia da eleição. O silêncio imposto aos candidatos pela legislação eleitoral impediu o candidato atingido de se manifestar. O Smer, partido favorável à retirada de apoio militar à vizinha Ucrânia, acabou vencendo a eleição.

A margem apertada daquela eleição tornou o uso da inteligência artificial mais dramático, mas não foi caso isolado nem o único alerta para o que se deve esperar de 2024, ano de eleições em 58 países, dos EUA à Índia, de Taiwan à Rússia, da Venezuela à África do Sul, e nos 5.565 municípios do Brasil.

Menos de um mês depois, a Argentina enfrentou uma eleição com farto uso de IA, mas a margem folgada da vitória de Javier Milei não permite que se atribua o resultado aos artifícios da tecnologia. Até porque peças nocivas também foram dirigidas contra si.

O presidente argentino cultivou sua fama de polemista com posições como a defesa do mercado de órgãos humanos. Na campanha, a equipe de Sergio Massa produziu um vídeo com IA em que Milei diz que filhos são um investimento de longo prazo dado o potencial econômico de seus órgãos. Imagem, voz e enredo eram falsos. Sergio Massa se diria chocado. O candidato peronista chegou a “atuar” em vídeos falsos que circularam anonimamente nas redes sociais argentinas durante a campanha cheirando cocaína. A diferença é que esse vídeo dos órgãos humanos era assumidamente de sua campanha.

O vídeo era acompanhado de um texto que dizia: “Pedimos para uma inteligência artificial ajudar Javier a explicar o negócio das vendas de órgãos e aconteceu isso”. A explicação também era falsa. Os aplicativos que trabalham com inteligência artificial se valem da imagem e da fala de personagens reais para fazê-los atuar em enredos produzidos pelo engenho e pela maledicência humanas.

Com o texto, a campanha peronista tentou se blindar dos ataques, mas o estrago estava feito. Por mais que o material produzido por inteligência artificial adote a linha do escracho, atinge os fins a que se destina, que é o de reforçar a imagem que se pretende fixar num candidato ou, como prefere Gabriel Gallindo, um dos publicitários brasileiros que colaborou com a campanha de Massa, “engrossar o caldo com que se produz afeto na política”.

Às vésperas das primárias de New Hampshire, na campanha americana, circulou um áudio falso em que o presidente Joe Biden pedia para os eleitores não votarem. Por mais que os eleitores acabassem desconsiderando o áudio, por esdrúxulo, constatou-se um risco nada desprezível de a imagem de Biden trapalhão prevalecer.

Gallindo não integrou a equipe que produziu o vídeo da venda de órgãos, mas defende o uso da inteligência artificial pela capacidade de baratear e dar agilidade às campanhas. Valeu-se da tecnologia, por exemplo, para produzir o vídeo mais conhecido da campanha argentina no Brasil. Nessa peça, a imagem do ex-presidente Jair Bolsonaro sofre uma mutação e se transforma em Javier Milei. A voz, ao fundo, que adverte para o perigo que pairava sobre a Argentina com aquela eleição foi o único recurso pinçado da inteligência artificial. O recurso foi utilizado para economizar a contratação de um locutor.

Hoje na campanha de Guilherme Boulos, Gallindo diz estar preparado, por exemplo, para vídeos das campanhas adversárias que tragam o pré-candidato do Psol à Prefeitura de São Paulo invadindo imóveis. Por isso, a campanha, que poderia sintetizar imagem e voz de Boulos para formatar a propaganda para diferentes regiões e estratos sociais e, assim, baratear os custos, optou por não se valer desse recurso.

A inteligência artificial, diz, será usada para explorar o prosaico, como, por exemplo, produzir peças que relacionem seu eleitor e o zodíaco - “Como o geminiano faz campanha para Boulos”. Ao optar apenas pela imagem e som reais de Boulos, a campanha coloca uma “marca d’água” na sua propaganda e limita a adversários a autoria de peças em que o pré-candidato do Psol esteja sintetizado.

Parece improvável que o uso se limite ao humor, ainda que este tenha sido o principal uso da inteligência artificial no ano passado. Um pioneiro no Brasil é o jornalista Bruno Sartori, que chegou a produzir vídeos com até 1 milhão de visualizações de puro escracho, a grande maioria dedicada ao ex-presidente Jair Bolsonaro.

Antes de chegar à política, as chamadas “deepfakes” (extremamente falsas) eram mais usadas por fabricantes de remédios falsos. Fizeram do médico Drauzio Varella seu “garoto-propaganda” mais frequente e, ultimamente, lançaram mão do jornalista Pedro Bial.

A peleja de ambos para identificar e punir os responsáveis tem, pelo menos, um ponto de partida, que é o fabricante da medicação falsa anunciada. Na política, as digitais são mais difusas. No áudio que sintetizou a voz do presidente americano Joe Biden recomendando as pessoas a não votar nas primárias de New Hampshire, em janeiro deste ano, as chamadas partiam do celular de uma funcionária de um comitê de financiamento dos democratas, mas o número foi clonado para esse fim.

Os riscos trazidos pela disseminação da inteligência artificial se somam àqueles ainda não regulamentados do impulsionamento da publicidade. O alerta foi feito pelo Instituto Democracia em Xeque durante audiência pública no Tribunal Superior Eleitoral em que foram colhidas sugestões para a regulamentação da disputa municipal.

Se a inteligência artificial barateia a produção da propaganda eleitoral, é o impulsionamento que expande seu alcance para as redes sociais, menos vigiadas pela Justiça Eleitoral que os canais tradicionais de rádio e televisão.

O instituto sugere que o impulsionamento siga regras ainda mais rigorosas do que aquelas das pesquisas eleitorais: permissão apenas na pré-campanha (de 6 de abril a 15 de agosto) e restrição a partidos políticos, que ficariam obrigados a declarar seus custos.

Propõe ainda que as redes sociais sejam obrigadas a manter um repositório dos anúncios impulsionados para acompanhamento em tempo real do conteúdo, dos valores pagos e dos responsáveis pelo pagamento. E ainda que a rotulagem da propaganda que se valha de inteligência artificial não possa ser feita em letra miúda ou velocidade de áudio aumentada para que fique claro o uso do artifício.

Entre os motivos elencados para a proposta estão o fato de o impulsionamento ser o segundo maior gasto das campanhas eleitorais (depois do horário eleitoral) e importante fonte de receita das grandes empresas de tecnologia.

Se o Congresso não conseguir votar o projeto do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), confeccionado a partir das sugestões colhidas da comissão de juristas montada na Casa para este fim, são estas resoluções que vão ter que dar conta de conter o uso desenfreado da ferramenta.

Uma fonte do governo federal, que acompanha a tramitação tanto das resoluções quanto do projeto de lei, garante que a grande oposição a ambas as iniciativas vem das plataformas que se recusam a assumir responsabilidades pela veiculação das “deepfakes”. Diz que o ideal seria que não se pudesse usar inteligência artificial nas campanhas, mas não vê como impedi-la. Vê numa regulamentação que vede o artifício para campanha negativa, explicite seu uso e dê transparência sobre autoria, custos e alcance a única saída. O problema é como fazê-lo. O PL das “fake news” na Câmara, por exemplo, está emperrado há um ano.

União Europeia, Reino Unido, Canadá e Austrália já aprovaram legislações restritivas para a inteligência artificial. No Brasil, até o projeto de lei para o uso responsável da internet ficou embarreirado. A despeito da longevidade do inquérito das “fake news” (cinco anos), ainda não se abriu sequer a caixa-preta do chamado “gabinete do ódio”, primeiro grande laboratório de comunicação em massa da mentira na era digital comandado pelo filho do presidente. A operação da Polícia Federal sobre a “Abin paralela” é a chance mais concreta de mapeamento do seu alcance.

O Brasil é o terceiro país que mais usa redes sociais no mundo, atrás da Índia e da Indonésia e à frente de Estados Unidos e China. As redes mais usadas são, nesta ordem, WhatsApp, Google, YouTube, Instagram, Facebook e TikTok. Ou seja, o maior volume de usuários vem de países que não são as sedes dessas empresas.

Pesquisa da Fundação Getulio Vargas sobre o consumo de mídias digitais divulgada em dezembro do ano passado diz que um em cada três usuários que acessam política na internet não veem gravidade na desinformação. Se compartilham conteúdos sabidamente falsos é porque se identificam com eles e não associam danos à democracia deles derivados. Está aí uma fronteira para o combate à desinformação que ainda custa a ser desbravada.

2 comentários:

Anônimo disse...

APENAS UMA OBS.::

■ " Dois dias antes da acirrada eleição na Eslováquia, em outubro do ano passado, o Facebook divulgou um áudio em que o candidato do partido pró-Otan contava a uma jornalista que seu partido comprara votos da minoria cigana do país. As vozes, falsas, foram produzidas por inteligência artificial. O episódio mostrou a vulnerabilidade não apenas do candidato mas da jornalista à ferramenta. ".
......................Mª C. Fernandes.

■■■
=》Foi o Facebook que divulgou o áudio?
=》 Ou o áudio foi divulgado... por meio do Facebook?

■■ Há uma grande diferença entre quem divulga e o meio pelo qual divulga.
■E, sim, penso que há que ser regulamentado o funcionamento das redes sociais.

Mas é uma regulamentação delicada para ser feita porque a regulamentação pode ser usada pelos que têm dificuldade em conviver com divergência ou que não gostam verdadeiramente da democracia, mesmo quando declaram que gostam; tanto que vivem acompanhados por segmentos antidemocráticos aqui no Brasil e no resto do mundo, apoiando ditaduras, terroristas e sempre tentando desqualificar democracias e democratas (e de vez em quando soprando a mordida que deram nos democratas, para enganar).

=》O PT tem nas costas 40 anos de produção de mentiras e leviandades exatamente contra os democratas brasileiros, e destruiu quase todos::: contra Fernando Henrique, José Serra, Mário Covas... E passou, .ais a partir deste ano, a dar estocadas em democracias diversas.
=》Bolsonaro já na sua origem, que foi nos setores antidemocráticos incrustados nas FFAA, vem de grupos autoritários. E Bolsonaro mente é é leviano como o PT.

Estas duas forças políticas dominam as mentes e almas políticas de grande contingente de brasileiros.
=》Qual regulação de redes sociais vai sair, se liderada por Lula e PT ou por Bolsonaro e bolsonaristas?

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o artigo.