Valor Econômico
Uso da inteligência artificial nas disputas
eleitorais da Eslováquia, Argentina e EUA mostra o que aguarda as eleições
municipais, embate que colocará em xeque a superação do bolsonarismo
Dois dias antes da acirrada eleição na
Eslováquia, em outubro do ano passado, o Facebook divulgou um áudio em que o
candidato do partido pró-Otan contava a uma jornalista que seu partido comprara
votos da minoria cigana do país. As vozes, falsas, foram produzidas por
inteligência artificial. O episódio mostrou a vulnerabilidade não apenas do
candidato mas da jornalista à ferramenta.
Ambos denunciaram o áudio de imediato, mas
como a política da Meta, dona do Facebook, é de excluir apenas vídeos - e não
áudios -, a peça publicitária se espalhou até o dia da eleição. O silêncio
imposto aos candidatos pela legislação eleitoral impediu o candidato atingido
de se manifestar. O Smer, partido favorável à retirada de apoio militar à
vizinha Ucrânia, acabou vencendo a eleição.
A margem apertada daquela eleição tornou o
uso da inteligência artificial mais dramático, mas não foi caso isolado nem o
único alerta para o que se deve esperar de 2024, ano de eleições em 58 países,
dos EUA à Índia, de Taiwan à Rússia, da Venezuela à África do Sul, e nos 5.565
municípios do Brasil.
Menos de um mês depois, a Argentina enfrentou uma eleição com farto uso de IA, mas a margem folgada da vitória de Javier Milei não permite que se atribua o resultado aos artifícios da tecnologia. Até porque peças nocivas também foram dirigidas contra si.
O presidente argentino cultivou sua fama de
polemista com posições como a defesa do mercado de órgãos humanos. Na campanha,
a equipe de Sergio Massa produziu um vídeo com IA em que Milei diz que filhos
são um investimento de longo prazo dado o potencial econômico de seus órgãos.
Imagem, voz e enredo eram falsos. Sergio Massa se diria chocado. O candidato
peronista chegou a “atuar” em vídeos falsos que circularam anonimamente nas
redes sociais argentinas durante a campanha cheirando cocaína. A diferença é que
esse vídeo dos órgãos humanos era assumidamente de sua campanha.
O vídeo era acompanhado de um texto que
dizia: “Pedimos para uma inteligência artificial ajudar Javier a explicar o
negócio das vendas de órgãos e aconteceu isso”. A explicação também era falsa.
Os aplicativos que trabalham com inteligência artificial se valem da imagem e
da fala de personagens reais para fazê-los atuar em enredos produzidos pelo
engenho e pela maledicência humanas.
Com o texto, a campanha peronista tentou se
blindar dos ataques, mas o estrago estava feito. Por mais que o material
produzido por inteligência artificial adote a linha do escracho, atinge os fins
a que se destina, que é o de reforçar a imagem que se pretende fixar num
candidato ou, como prefere Gabriel Gallindo, um dos publicitários brasileiros
que colaborou com a campanha de Massa, “engrossar o caldo com que se produz
afeto na política”.
Às vésperas das primárias de New Hampshire,
na campanha americana, circulou um áudio falso em que o presidente Joe Biden
pedia para os eleitores não votarem. Por mais que os eleitores acabassem
desconsiderando o áudio, por esdrúxulo, constatou-se um risco nada desprezível
de a imagem de Biden trapalhão prevalecer.
Gallindo não integrou a equipe que produziu o
vídeo da venda de órgãos, mas defende o uso da inteligência artificial pela
capacidade de baratear e dar agilidade às campanhas. Valeu-se da tecnologia,
por exemplo, para produzir o vídeo mais conhecido da campanha argentina no
Brasil. Nessa peça, a imagem do ex-presidente Jair Bolsonaro sofre uma mutação
e se transforma em Javier Milei. A voz, ao fundo, que adverte para o perigo que
pairava sobre a Argentina com aquela eleição foi o único recurso pinçado da inteligência
artificial. O recurso foi utilizado para economizar a contratação de um
locutor.
Hoje na campanha de Guilherme Boulos,
Gallindo diz estar preparado, por exemplo, para vídeos das campanhas
adversárias que tragam o pré-candidato do Psol à Prefeitura de São Paulo
invadindo imóveis. Por isso, a campanha, que poderia sintetizar imagem e voz de
Boulos para formatar a propaganda para diferentes regiões e estratos sociais e,
assim, baratear os custos, optou por não se valer desse recurso.
A inteligência artificial, diz, será usada
para explorar o prosaico, como, por exemplo, produzir peças que relacionem seu
eleitor e o zodíaco - “Como o geminiano faz campanha para Boulos”. Ao optar
apenas pela imagem e som reais de Boulos, a campanha coloca uma “marca d’água”
na sua propaganda e limita a adversários a autoria de peças em que o
pré-candidato do Psol esteja sintetizado.
Parece improvável que o uso se limite ao
humor, ainda que este tenha sido o principal uso da inteligência artificial no
ano passado. Um pioneiro no Brasil é o jornalista Bruno Sartori, que chegou a
produzir vídeos com até 1 milhão de visualizações de puro escracho, a grande
maioria dedicada ao ex-presidente Jair Bolsonaro.
Antes de chegar à política, as chamadas
“deepfakes” (extremamente falsas) eram mais usadas por fabricantes de remédios
falsos. Fizeram do médico Drauzio Varella seu “garoto-propaganda” mais
frequente e, ultimamente, lançaram mão do jornalista Pedro Bial.
A peleja de ambos para identificar e punir os
responsáveis tem, pelo menos, um ponto de partida, que é o fabricante da
medicação falsa anunciada. Na política, as digitais são mais difusas. No áudio
que sintetizou a voz do presidente americano Joe Biden recomendando as pessoas
a não votar nas primárias de New Hampshire, em janeiro deste ano, as chamadas
partiam do celular de uma funcionária de um comitê de financiamento dos
democratas, mas o número foi clonado para esse fim.
Os riscos trazidos pela disseminação da
inteligência artificial se somam àqueles ainda não regulamentados do
impulsionamento da publicidade. O alerta foi feito pelo Instituto Democracia em
Xeque durante audiência pública no Tribunal Superior Eleitoral em que foram
colhidas sugestões para a regulamentação da disputa municipal.
Se a inteligência artificial barateia a
produção da propaganda eleitoral, é o impulsionamento que expande seu alcance
para as redes sociais, menos vigiadas pela Justiça Eleitoral que os canais
tradicionais de rádio e televisão.
O instituto sugere que o impulsionamento siga
regras ainda mais rigorosas do que aquelas das pesquisas eleitorais: permissão
apenas na pré-campanha (de 6 de abril a 15 de agosto) e restrição a partidos
políticos, que ficariam obrigados a declarar seus custos.
Propõe ainda que as redes sociais sejam
obrigadas a manter um repositório dos anúncios impulsionados para
acompanhamento em tempo real do conteúdo, dos valores pagos e dos responsáveis
pelo pagamento. E ainda que a rotulagem da propaganda que se valha de
inteligência artificial não possa ser feita em letra miúda ou velocidade de
áudio aumentada para que fique claro o uso do artifício.
Entre os motivos elencados para a proposta
estão o fato de o impulsionamento ser o segundo maior gasto das campanhas
eleitorais (depois do horário eleitoral) e importante fonte de receita das
grandes empresas de tecnologia.
Se o Congresso não conseguir votar o projeto
do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), confeccionado a partir das
sugestões colhidas da comissão de juristas montada na Casa para este fim, são
estas resoluções que vão ter que dar conta de conter o uso desenfreado da
ferramenta.
Uma fonte do governo federal, que acompanha a
tramitação tanto das resoluções quanto do projeto de lei, garante que a grande
oposição a ambas as iniciativas vem das plataformas que se recusam a assumir
responsabilidades pela veiculação das “deepfakes”. Diz que o ideal seria que
não se pudesse usar inteligência artificial nas campanhas, mas não vê como
impedi-la. Vê numa regulamentação que vede o artifício para campanha negativa,
explicite seu uso e dê transparência sobre autoria, custos e alcance a única saída.
O problema é como fazê-lo. O PL das “fake news” na Câmara, por exemplo, está
emperrado há um ano.
União Europeia, Reino Unido, Canadá e
Austrália já aprovaram legislações restritivas para a inteligência artificial.
No Brasil, até o projeto de lei para o uso responsável da internet ficou
embarreirado. A despeito da longevidade do inquérito das “fake news” (cinco
anos), ainda não se abriu sequer a caixa-preta do chamado “gabinete do ódio”,
primeiro grande laboratório de comunicação em massa da mentira na era digital
comandado pelo filho do presidente. A operação da Polícia Federal sobre a “Abin
paralela” é a chance mais concreta de mapeamento do seu alcance.
O Brasil é o terceiro país que mais usa redes
sociais no mundo, atrás da Índia e da Indonésia e à frente de Estados Unidos e
China. As redes mais usadas são, nesta ordem, WhatsApp, Google, YouTube,
Instagram, Facebook e TikTok. Ou seja, o maior volume de usuários vem de países
que não são as sedes dessas empresas.
Pesquisa da Fundação Getulio Vargas sobre o consumo de mídias digitais divulgada em dezembro do ano passado diz que um em cada três usuários que acessam política na internet não veem gravidade na desinformação. Se compartilham conteúdos sabidamente falsos é porque se identificam com eles e não associam danos à democracia deles derivados. Está aí uma fronteira para o combate à desinformação que ainda custa a ser desbravada.
2 comentários:
APENAS UMA OBS.::
■ " Dois dias antes da acirrada eleição na Eslováquia, em outubro do ano passado, o Facebook divulgou um áudio em que o candidato do partido pró-Otan contava a uma jornalista que seu partido comprara votos da minoria cigana do país. As vozes, falsas, foram produzidas por inteligência artificial. O episódio mostrou a vulnerabilidade não apenas do candidato mas da jornalista à ferramenta. ".
......................Mª C. Fernandes.
■■■
=》Foi o Facebook que divulgou o áudio?
=》 Ou o áudio foi divulgado... por meio do Facebook?
■■ Há uma grande diferença entre quem divulga e o meio pelo qual divulga.
■E, sim, penso que há que ser regulamentado o funcionamento das redes sociais.
Mas é uma regulamentação delicada para ser feita porque a regulamentação pode ser usada pelos que têm dificuldade em conviver com divergência ou que não gostam verdadeiramente da democracia, mesmo quando declaram que gostam; tanto que vivem acompanhados por segmentos antidemocráticos aqui no Brasil e no resto do mundo, apoiando ditaduras, terroristas e sempre tentando desqualificar democracias e democratas (e de vez em quando soprando a mordida que deram nos democratas, para enganar).
=》O PT tem nas costas 40 anos de produção de mentiras e leviandades exatamente contra os democratas brasileiros, e destruiu quase todos::: contra Fernando Henrique, José Serra, Mário Covas... E passou, .ais a partir deste ano, a dar estocadas em democracias diversas.
=》Bolsonaro já na sua origem, que foi nos setores antidemocráticos incrustados nas FFAA, vem de grupos autoritários. E Bolsonaro mente é é leviano como o PT.
Estas duas forças políticas dominam as mentes e almas políticas de grande contingente de brasileiros.
=》Qual regulação de redes sociais vai sair, se liderada por Lula e PT ou por Bolsonaro e bolsonaristas?
Muito bom o artigo.
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