quarta-feira, 24 de julho de 2024

Elio Gaspari - Ouçam a voz do povo

O Globo

Pesquisa mostra o lado conservador do país

O Instituto da Democracia pôs na rua uma pesquisa que mostrou a superposição de algumas agendas entre os eleitores de Lula e os de Jair Bolsonaro. Com grande felicidade, ela se chama “A cara da democracia no Brasil”. Para cabeças polarizadas, a cara da democracia brasileira não é boa. Nenhum radical, seja de qual credo for, gostará dos resultados do trabalho, compilado pelo pesquisador João Feres Júnior, da Uerj, e mostrado pelo repórter Bernardo Mello.

Um em cada dois eleitores de Lula é contrário às saidinhas de cidadãos encarcerados, e 57% são contrários à proibição de vendas de armas de fogo. Em 2005, o país levou o assunto a referendo, e a restrição foi derrubada por mais de 60% dos votos, mas virou falta de educação lembrar esse resultado. Legalização do aborto? Sessenta e nove por cento são contra.

No campo de Bolsonaro, esses números são obviamente mais robustos, mas na sintonia fina voltam a surpreender: se 83% dos eleitores do capitão defendem a militarização das escolas públicas, são acompanhados por 61% dos eleitores de Lula. Mais: 55% dos eleitores de Bolsonaro defendem a pena de morte. Parece pouco, porém no campo de Lula essa percentagem é de 42%.

Opiniões desse tipo desse tipo podem chocar os bem-pensantes, mas o que a pesquisa pretende mostrar é como o povo da amostra pensa. Aceita-se isso ou segue-se o conselho do professor Antônio Delfim Netto em 1985, quando Jânio Quadros derrotou Fernando Henrique Cardoso na disputa pela Prefeitura de São Paulo:

— Vão precisar mudar de povo.

A cepa conservadora do eleitorado brasileiro está aí. O Brasil tem um eleitorado conservador em relação à segurança pública e aos costumes.

Os eleitores de Bolsonaro e Lula não são semelhantes em relação a alguns temas: 23% de um são contra o Bolsa Família, no outro lado só 9% (14% não opinaram).

De certa maneira, criaram-se dois estereótipos. O do sujeito que votou em Bolsonaro ficou previsível. O de Lula deveria levar seus explicadores do Brasil a calçar as sandálias da humildade. A “cara da democracia” compilada por Feres mostrou que mais de 20% dos eleitores de Lula são favoráveis à prisão de mulheres que interrompem a gravidez (36%), à privatização da Petrobras (37%) e contrários à punição de militares que participaram do 8 de Janeiro (29%). Depois de dez anos da demonstração das virtudes das cotas raciais nas universidades, 35% dos eleitores de Lula são contra. Do lado de Bolsonaro, são 52%.

Colocando esse número ao lado do 1,8 ponto percentual que deu a vitória a Lula, percebe-se o vigor de uma das Leis de Heitor Ferreira:

— Muitas vezes, não é um candidato que ganha, só outro que perde.

Bolsonaro perdeu em 2022, como o PT perdeu em 2018. Num exercício de passadologia, qual teria sido o resultado da eleição se Bolsonaro não tivesse pronunciado as palavras “vacina” ou “cloroquina”?

A agenda progressista tem virtudes, até porque a do regressismo amarrou o Brasil à escravidão e ao contrabando de negros. Mesmo assim, não é desse modo que marcham as sociedades. Quem ouvia Martin Luther King em 1963 jamais imaginaria que, em 2024, Donald Trump estivesse de novo com um pé na Casa Branca.

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