Operação da PF contra tráfico de armas é exemplar
O Globo
Em vez de disparar tiros a esmo, com risco à
população, investigação cercou o flanco financeiro dos criminosos
Foi oportuna e exemplar a operação da Polícia
Federal (PF) deflagrada nesta quinta-feira para combater o tráfico
internacional de armas, responsável por abastecer organizações criminosas que
infernizam a vida dos brasileiros. Em vez de disparar tiros a esmo que, além de
pouco resultado prático, trazem riscos à população de áreas conflagradas, a PF
desmantelou a quadrilha por meio de inteligência, longa investigação e
cooperação entre diferentes órgãos. A operação cercou o flanco financeiro da
organização criminosa, mirando no bolso dos traficantes.
A PF desbaratou uma quadrilha acusada de ter
enviado, ao longo dos últimos anos, 2 mil fuzis de Miami, nos Estados Unidos,
para comunidades do Rio dominadas pelo Comando Vermelho. As investigações
começaram em 2017, quando foram apreendidos 60 fuzis no Aeroporto Internacional
Tom Jobim/Galeão. As armas, de uso restrito, estavam escondidas numa carga de
aquecedores de piscina.
Um dos alvos da ação, batizada Cash Courier, foi o policial federal aposentado Josias João do Nascimento, conhecido como “Senhor do senhor das armas”, segundo reportagem do Bom Dia Rio, da TV Globo. Era ele quem chefiava o bando que, durante anos, foi comandado por Frederik Barbieri, considerado o maior traficante de armas do Brasil. Desde 2018, o brasileiro Barbieri está preso nos Estados Unidos, onde cumpre pena de 12 anos e oito meses de prisão por tráfico internacional de armas.
Agentes da PF cumpriram 14 mandados de busca
e apreensão em condomínios de luxo e empresas ligadas a integrantes da
quadrilha na Barra da Tijuca e no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste do Rio.
Em alguns endereços, os acusados reagiram a tiros, e um miliciano que atirou
foi preso em flagrante. A Justiça determinou sequestro e bloqueio de bens e
ativos de todos os suspeitos, avaliados em R$ 50 milhões.
De acordo com as investigações, a quadrilha
usava pessoas físicas e jurídicas para comprar imóveis e outros bens, de modo a
lavar o dinheiro obtido com o tráfico. Os acusados responderão pelos crimes de
tráfico internacional de armas, organização criminosa, lavagem de dinheiro,
evasão de divisas e corrupção ativa e passiva. A operação, fruto de integração
de órgãos estaduais e nacionais, como Ministério Público Federal, Comitê de
Inteligência Financeira e Recuperação de Ativos (Cifra) da Polícia Civil e Secretaria
Nacional de Segurança Pública (Senasp), é um desdobramento da Senhor das Armas,
que apreendeu a carga de fuzis em 2017.
Combater o tráfico de armas e drogas tem sido um desafio para as autoridades de segurança. As cargas vêm do exterior e entram no país sem dificuldades pelas mais variadas rotas, mesmo as menos prováveis, como o Galeão, onde em tese deveria haver mais vigilância. É sem dúvida preciso aumentar a fiscalização para tentar interceptar os carregamentos. Mas, mesmo quando há apreensão, a droga ou a arma já entrou. Mais eficaz é investigar as quadrilhas, seguir o rastro do dinheiro, bloquear seus bens, asfixiá-las financeiramente e prender seus chefes. Não é tarefa simples — a atual investigação levou oito anos —, mas costuma dar os melhores resultados. Se os esquemas criminosos que inundam o Brasil de drogas e armas não forem desmantelados, o trabalho das polícias no combate à violência do dia a dia sempre será inglório.
Câmara deveria aprovar isenção de visto a
turistas americanos
O Globo
Projeto do Senado que também beneficia
australianos, canadenses e japoneses interessa aos brasileiros
O Senado tomou uma decisão sensata ao manter
a dispensa de visto para cidadãos de Austrália, Canadá, Estados Unidos ou Japão
entrarem no Brasil. O projeto, de autoria do senador Carlos Portinho (PL-RJ) e
relatado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), segue agora para a Câmara, que
deveria confirmá-lo.
O Brasil recebeu no ano passado 6,6 milhões
de turistas estrangeiros, 12,6% a mais que em 2023, crescimento acima da média
global. É o maior número já registrado. Estrangeiros deixaram US$ 7,3 bilhões
no país, outro recorde. Com atrações naturais, riqueza cultural e
infraestrutura de acolhimento, o Brasil tem potencial para receber muito mais
visitantes. Facilitar a vida dos turistas interessados em vir para cá é o
mínimo a fazer para atraí-los.
Em 2019, o então presidente Jair Bolsonaro
publicou decreto dispensando visto para americanos, australianos, canadenses e
japoneses. Em 2023, o governo Luiz Inácio Lula da Silva tomou a decisão de
voltar atrás, mas o visto passaria a ser exigido apenas a partir do próximo dia
10 de abril. A iniciativa de Portinho tenta evitar o retrocesso. Em parecer, o
relator Flávio Bolsonaro diz que o retorno da exigência seria um fator de
desencorajamento a turistas estrangeiros. Diante da burocracia, da dificuldade
do planejamento e do custo, muitos poderiam escolher “destinos mais
acessíveis”. Ele está certo.
Em 2018, ano anterior ao fim da exigência de
visto, 538,5 mil americanos entraram no Brasil. De lá para cá, a pandemia
prejudicou todo o setor, mesmo assim o total subiu para 728,5 mil em 2024, bem
acima da média. O influxo de canadenses cresceu na mesma proporção. Os
australianos, pouco menos, ainda assim 25%. Apenas os japoneses registraram
queda.
Nos corredores do Itamaraty, diplomatas
costumam criticar a dispensa unilateral de visto, argumentando não fazer
sentido cancelar a exigência de países que a impõem aos brasileiros. É um
argumento frágil. Não há multidões de americanos, canadenses, australianos ou
japoneses querendo entrar no Brasil como turistas para permanecer como
imigrantes ilegais. O movimento migratório brasileiro tem o sentido contrário.
A reciprocidade apenas pune nossa economia.
Basta perguntar aos 191,2 mil contratados com
carteira assinada em 2024 para trabalhar em atividades ligadas ao turismo. Para
todos, trata-se de conceito abstrato e inútil. Guias, recepcionistas e
camareiros em hotéis, cozinheiros e garçons em restaurantes não são os únicos
beneficiados pelo maior fluxo de turistas. O investimento estrangeiro no setor
no ano passado atingiu US$ 360 milhões, 40% acima do ano anterior. É dinheiro
aplicado na compra de veículos, na construção de atrações culturais ou de alojamento.
A decisão sobre onde passar as férias é
determinada por diversos fatores, e burocracia também pesa. É isso que os
deputados devem lembrar ao examinar o projeto aprovado no Senado. Com tantos
brasileiros se beneficiando da entrada de mais americanos, australianos e
canadenses, não há motivo para voltar a exigir visto.
Brasil terá difícil missão de evitar
frustração na COP30
Valor Econômico
Sucesso da estratégia brasileira e da própria COP depende de encontrar uma forma intermediária para o elefante na sala climática: o fim do uso dos combustíveis fósseis
Em setembro do ano passado, o presidente Lula
anunciou que o Brasil, sede da COP30, teria, enfim, uma autoridade climática,
sua promessa da campanha de 2022. Passados pouco mais de seis meses da
declaração, feita com pompa na Amazônia, nada saiu do papel. Desde então, o
mundo assistiu a uma série de notícias alarmantes sobre o aquecimento global e
sofreu importantes revezes na luta para contê-lo - o mais claro deles com a
volta de Donald Trump à Casa Branca. O quadro desafiador pressiona o Brasil,
que tem pouca margem de erro e deve superar suas próprias ambiguidades na
difícil missão de impedir reveses que já se desenham para a cúpula em Belém.
A COP30 ocorrerá em um momento em que a crise
climática está se intensificando. O ano de 2024 foi o mais quente registrado na
história, e 2025 já parece trilhar o mesmo caminho, com o mês de janeiro também
quebrando recordes de temperatura, mesmo com a ocorrência do La Niña, fenômeno
que normalmente ajuda a aliviar o calor. O nível global dos oceanos está
subindo mais que o esperado, com o dobro do ritmo de elevação anual, o que
surpreendeu cientistas. Eventos climáticos extremos se tornaram recorrentes. Em
todos os cantos do mundo, a situação é cada vez mais alarmante.
A urgência em enfrentar o problema e os
desafios criados pelo contexto geopolítico adverso não permitem ao governo ser
paradoxal em suas posições ambientais, sob o risco de minar a credibilidade do
país nas negociações, por mais hábeis e respeitados que sejam o embaixador
André Corrêa do Lago e a economista Ana Toni, escolhas acertadas do Planalto
para liderar o time brasileiro na condução do evento. E o fato de a autoridade
climática ainda estar no plano das ideias é apenas um dos muitos entraves colocados
pela indefinição em Brasília.
Faltando oito meses para a COP30, Belém,
indicada como sede pelo simbolismo de se realizar uma cúpula climática no
coração da Amazônia, continua sem a estrutura mínima para atender a um evento
desse porte. Ativistas, empresas e delegações de países que virão ao Brasil
lutam para tentar conseguir hospedagem na cidade, cujos preços inflacionados já
se tornaram exorbitantes. Também não se sabe o rumo que o governo tomará em sua
política energética, tema crucial desta cúpula. Como vamos conciliar o plano de
energia limpa com transição energética e a nova frente de exploração de
petróleo na Margem Equatorial? O presidente Lula é favorável à exploração, e o
Brasil tem de decidir a questão, antes, ou, como defende parte dos
ambientalistas, depois da COP30.
Além disso, a volta de Trump ao poder
acrescentou obstáculos que vão muito além do desmantelamento da pauta ambiental
americana e da saída do Acordo de Paris. Com a guinada na política externa da
Casa Branca, governos antes engajados na agenda climática repensam prioridades.
É o caso dos países da Europa, que agora despejarão bilhões de euros no
rearmamento, dinheiro que poderia abastecer fundos para financiar ações de
adaptação e mitigação climática.
O efeito Trump também tem consequências
nefastas sobre o financiamento privado. Desde a posse, grandes empresas vêm
recuando de investimentos em projetos verdes e abandonando a divulgação de
relatórios ambientais em seus balanços. Na estreia do “drill, baby, drill”, que
embalou a campanha do republicano, petrolíferas retomam investimentos em
projetos de combustíveis fósseis, e míngua a discussão de transição energética.
Bancos americanos, por sua vez, deixaram importantes alianças que são
comprometidas com o Acordo de Paris e a descarbonização da economia.
Esta miríade de retrocessos eleva o risco de
a cúpula em Belém terminar sem alcançar seus dois principais objetivos. De
partida, a meta de ter US$ 1,3 trilhão por ano até 2025 para ações climáticas
em países em desenvolvimento fica virtualmente inviabilizada sem o apoio de
americanos e com os europeus com sua atenção dividida. Da mesma forma, será uma
missão difícil acelerar a implementação das metas do Acordo de Paris com a
volta de Trump e seus simpatizantes, no mundo político e empresarial.
Nesse sentido, é acertada a carta de Corrêa
do Lago ao convocar um “mutirão” para “virar o jogo” contra o aquecimento
global. Sinaliza que o Brasil sabe que, para a batalha climática, será preciso
ampliar o leque de aliados e engajar, em definitivo, a sociedade civil para
explorar a lacuna aberta por negacionistas, replicando seu trabalho
bem-sucedido do G20. Para que o mundo supere esse desafio, é essencial traduzir
a complicada linguagem das mesas de negociação das COPs, incompreensível para a
maioria da população, e combater assim discursos oportunistas, além da própria
desesperança.
O sucesso dessa estratégia e da própria COP,
porém, depende de encontrar uma forma intermediária para o elefante na sala
climática: o fim do uso dos combustíveis fósseis. Houve determinação na COP28
para que o mundo começasse a se afastar deles, o que desapareceu na COP29. A
intenção de explorar a Margem Equatorial, se concretizada antes da reunião de
Belém, terá de vir com uma argumentação universal, válida para todos e fruto de
muito debate. É um tema de difícil consenso, mas crucial para o futuro das conferências
do clima.
Em meio à incerteza, BC faz opção pela
segurança
Folha de S. Paulo
Taxa de juros sobe para 14,25%; ritmo de alta
será menor daqui em diante, mas com atenção à inflação acima da meta
O Banco Central decidiu
na quarta-feira (19) elevar sua taxa de juros em um
ponto percentual, para
14,25% ao ano, como esperado. Mais importante que a medida, foi o
comunicado em que a autoridade monetária dá explicação preliminar sobre suas
razões.
Em resumo, a nova direção do BC, agora com
maioria indicada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), agiu de
modo adequadamente convencional, demonstrou preocupação com a inflação ainda
alta e passou a impressão de que vai se comportar de modo racional e seguro.
Uma parte dos analistas chegou a recear que a
instituição pudesse se mostrar mais preocupada com o ritmo da atividade
econômica do que com os preços. Isto é, que revelasse a disposição de encerrar
de modo precoce a campanha de subida da taxa básica de juros. Não foi assim.
No comunicado, afirma-se sem dúvida que a
majoração da Selic na
próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), marcada
para o início de maio, será menor do que a das últimas decisões.
Quanto ao encontro de meados de junho, a
questão fica em aberto, ainda mais dependente de dados. No entanto reafirmou-se
que o conjunto de riscos aponta para uma inflação em alta, entre outros sinais
de preocupação com o descumprimento da meta.
Isto é, depois
de três aumentos de juros emergenciais, a campanha continua, mas em ritmo
menos intenso. O passo da Selic poderia ser ajustado dado que o aperto
monetário já foi significativo, restringe a atividade econômica de modo
"incipiente" e porque a política do BC opera com defasagem, com efeitos
maiores daqui a até um ano e meio.
Ainda é elevado o IPCA previsto, de 3,9%
anuais no terceiro trimestre de 2026, momento mais relevante para a
consideração dos efeitos dos juros —a meta é de 3%. O órgão ganhou tempo para
averiguar se esses efeitos nas expectativas inflacionárias vão se tornar mais
notáveis nos próximos meses. Agindo de modo ligeiramente conservador, pode
conter as previsões.
A tarefa é mais complexa devido a
turbulências na economia internacional.
Também na quarta, o Fed, o banco
central dos Estados
Unidos, decidiu
manter a taxa básica em torno de 4,3% ao ano. Reduziu de 2,1% para 1,7% a
projeção de crescimento do PIB e elevou a de inflação de 2,5% para 2,7% em
2025. Indicou ainda que deve cortar juros em pelo menos duas ocasiões, neste
ano.
Trata-se, pois, de cenário de pouso suave,
mas sujeito a solavancos. Ainda não se sabe o que Donald Trump fará
de impostos de importação, do enorme déficit público ou mesmo da política
externa, o que pode tumultuar o ambiente financeiro.
A incerteza persiste lá e aqui —ainda se
receia que o governo brasileiro possa tomar medidas de estímulo fiscal e de
crédito a fim de evitar a desaceleração da economia. Nessa conjuntura, o BC
optou pela segurança. Ao menos uma boa notícia.
Parceria privada pode melhorar escola pública
Folha de S. Paulo
STF acerta ao autorizar projeto de
terceirização na rede de ensino paulista; modelo ajuda Estado a focar na
aprendizagem
O ministro Luís
Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), tomou a decisão
correta ao suspender liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo que
interrompeu um amplo processo de terceirização na rede de ensino paulista.
Isso porque parceiras público-privadas (PPPs)
são instrumento importante para impulsionar investimentos em um país no qual
governos nas três esferas enfrentam desafios com orçamentos deficitários e
engessados por gastos com pessoal e previdenciário
Tal aliança já se dá nos setores da saúde e
da infraestrutura,
mas ganha ares de polêmica —por corporativismo ou ideologia— na educação, como
se vê no caso do projeto da gestão de Tarcísio
de Freitas (Republicanos).
O governo paulista realizou dois leilões no
final de 2024 para a construção e manutenção por parte da iniciativa privada de
33 novas escolas. Neste ano, 143 unidades já em funcionamento também terão
serviços terceirizados.
As empresas investirão R$ 2,1 bilhões, e a
previsão de entrega das obras é 2027. Estima-se que, em 29 cidades, as novas
escolas ofertarão cerca de 35 mil vagas de tempo integral —modelo de ensino que
precisa se ampliado, dado seu notório benefício à aprendizagem do alunado.
O PSOL acionou
a Justiça paulista para interromper o projeto. O juiz Manuel Fonseca Pires
acatou o pedido sob o argumento de que a
iniciativa compromete a autonomia pedagógica e o "princípio
constitucional de gestão democrática da educação pública".
As empresas contratadas, porém, serão
responsáveis apenas por obras, manutenção predial e serviços como vigilância,
limpeza e alimentação.
A área pedagógica continuará sob o comando da Secretaria de Educação.
Ademais, ao aceitar o recurso do governo
paulista, Barroso lembrou que os serviços contemplados já são terceirizados. As
PPPs só trazem mais racionalidade ao processo: "em vez de múltiplos
contratos fragmentados, o modelo permitiria uma gestão integrada e de longo
prazo".
Qualquer tentativa de politizar o modelo é
insensata. A lei federal que instituiu as PPPs foi sancionada em 2004 por Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT). Belo
Horizonte foi a capital pioneira no uso da parceira na educação, em
2013, durante administração do PSB.
Não se trata de algum bicho de sete cabeças. Ao direcionar obras e serviços não pedagógicos às empresas, o Estado consegue concentrar esforços na aprendizagem, cujos indicadores ainda são precários no Brasil —de modo mais preocupante na rede pública do ensino básico.
A república bananeira de Trump
O Estado de S. Paulo
Um presidente arbitrário, uma administração
entregue a um bilionário e um governo que desdenha do Estado de Direito: tudo
isso definia uma república bananeira. Agora, é o que define os EUA
Recentemente o presidente dos EUA, Donald
Trump, parafraseou Napoleão em suas redes sociais: “Quem salva o seu país não
viola nenhuma lei”. Mas o que acontece se o Judiciário discordar? Nos quase 250
anos da república norte-americana, este nunca foi um problema, porque nenhum
presidente desobedeceu a uma ordem judicial. Mas Trump, o primeiro criminoso
condenado a exercer a Presidência americana, veio para destruir as tradições –
e, com elas, o Estado de Direito, o esteio da república. Em seu segundo mandato,
Trump está testando como nunca os limites do Poder Executivo, e o risco de um
impasse constitucional é cada vez maior.
No caso mais recente, que certamente não será
o último, Trump invocou uma lei de 1798 para deportar membros de uma gangue
venezuelana para El Salvador. A mencionada lei, que só se presta a tempos de
guerra e foi aplicada pela última vez na Segunda Guerra Mundial, permite
expulsar inimigos estrangeiros. Segundo o governo, a medida se justifica porque
a tal gangue venezuelana está em “guerra” contra os EUA.
Não foi o que entendeu um juiz federal, que
ordenou o cancelamento da deportação até que os referidos estrangeiros tivessem
o tratamento judicial consoante o Estado de Direito – isto é, que fossem
submetidos ao devido processo legal, em que cada um sabe exatamente do que está
sendo acusado e pode se defender. Nada disso aconteceu: nem os acusados tiveram
qualquer chance de se defender, nem a ordem do juiz foi obedecida. Os
deportados foram enviados para as masmorras de El Salvador, governado por Nayib
Bukele, aquele que reduziu a criminalidade no país acabando violentamente com o
Estado de Direito. Não à toa, Trump celebrou seu colega salvadorenho: “Não
esqueceremos!”.
Oficialmente, o governo Trump afirma que não
desobedeceu a ordem nenhuma, mas o responsável pela política de imigração dos
EUA, Tom Homan, foi claro em entrevista à Fox News: “Eles não vão nos impedir.
Não vamos recuar. Não me importo com a opinião dos juízes nem com o que pensa a
esquerda. Nós vamos avançar”. Em seguida, o próprio presidente Trump demandou o
impeachment do juiz que deu a ordem, classificando-o de “lunático da esquerda
radical”.
Trump foi repreendido pelo presidente da
Suprema Corte americana, John Roberts, que, em raríssima manifestação pública,
disse que “impeachment não é a resposta apropriada quando se discorda de uma
decisão judicial”. Não é, mas Trump e seus devotos aparentemente não dão a
mínima para o que é apropriado. O vice-presidente J. D. Vance já disse que
“juízes não têm permissão para controlar o poder legítimo do Executivo”, uma
fórmula ambígua que, de um lado, exprime uma platitude sobre a separação de
Poderes e, de outro, insinua que quem decide o que é legítimo é o presidente,
como nas monarquias absolutistas.
Movido por esse espírito, Trump, invocando
leis obscuras e conceitos vagos como “segurança nacional”, está tentando
revestir de legalidade ações francamente contrárias ao espírito constitucional.
É o caso da prisão de um imigrante legal que liderou protestos contra Israel na
Universidade Columbia. Não se sabe exatamente do que o imigrante é acusado – o
governo ora diz que atua para conter o antissemitismo, ora afirma que há
relação entre o imigrante e o grupo terrorista Hamas. Mas a acusação formal,
qualquer que venha a ser ela, não importa: o objetivo é constranger a livre
manifestação do pensamento.
Do mesmo modo, Trump nem se deu ao trabalho
de dar algum verniz legal à ação truculenta do bilionário Elon Musk na
administração pública americana. Sem cargo oficial, Musk ganhou carta branca
para demitir quem quiser, para ter acesso a dados sensíveis e para asfixiar
agências que deveriam funcionar por determinação do Congresso, numa escandalosa
intromissão privada na máquina pública e na soberania popular do Legislativo.
Decisões arbitrárias e ilegais do presidente,
loteamento da administração pública para empresários amigos do poder, desdém
absoluto pelo Estado de Direito, tudo isso é o que costumava definir uma
república bananeira. Agora, é o que define os EUA – o outrora “farol da
democracia”.
Doce exílio
O Estado de S. Paulo
Nos EUA, Eduardo Bolsonaro anuncia que não
voltará ao Brasil e que denunciará a ‘ditadura’ no País. Ora, ditadura de
verdade foi a de 64, que os Bolsonaros vivem a celebrar
A fuga do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP)
para os EUA, sob a tresloucada justificativa de que o Brasil, ora vejam,
estaria sob regime de exceção, emite um potente sinal político. A família
Bolsonaro jogou a toalha e já dá como favas contadas a condenação e a prisão de
Jair Bolsonaro pelos crimes dos quais o ex-presidente foi acusado pela
Procuradoria-Geral da República (PGR) no âmbito da tentativa de golpe de Estado
para aferrá-lo ao poder em 2022. E à medida que Bolsonaro se aproxima desse
encontro com o destino, aos membros de seu clã parece não haver alternativa a
não ser reivindicar, no Brasil e no exterior, a condição de “perseguidos
políticos” por uma “ditadura”.
Ora, ditadura de verdade, sem aspas, é o que
vigorou de 1964 a 1985, período no qual muitos cidadãos brasileiros não tiveram
escolha senão exilar-se no exterior porque as alternativas eram a prisão e a
tortura. Pois é essa ditadura que os Bolsonaros e seus seguidores
frequentemente celebram, há décadas.
A “ditadura” denunciada pelo sr. Eduardo
Bolsonaro, por outro lado, é pitoresca. Nela, recentemente, Jair Bolsonaro pôde
liderar livremente uma manifestação política no Rio de Janeiro, na qual os
bolsonaristas expressaram sua hostilidade ao Judiciário. Ademais, que ditadura
é esta da qual um dos deputados mais bem votados do Brasil se apresenta como
“vítima”, malgrado manter intocados seus direitos políticos e suas
prerrogativas parlamentares?
Portanto, se nesta história canhestra há um
inimigo declarado do Estado Democrático de Direito, este é o próprio sr.
Eduardo Bolsonaro, useiro e vezeiro em desmoralizar as instituições
republicanas. Trata-se de alguém que já disse que, para fechar o Supremo
Tribunal Federal (STF), bastam “um cabo e um soldado”.
O Brasil, obviamente, não está sob regime de
exceção. Jair Bolsonaro e sua prole têm plena consciência disso. Afinal, na
condição de entusiasmados admiradores de uma ditadura de verdade, sabem
exatamente reconhecer quando estão diante de uma. De modo que cada lágrima
derramada pelo ex-presidente e por Eduardo e cada palavra dos discursos tão
enfadonhos quanto grandiloquentes contra a “ditadura do STF” e a “morte” da
democracia no Brasil não querem dizer outra coisa senão o reconhecimento do clã
Bolsonaro de que o destino político e penal do chefe está traçado e, diante
disso, o mundo político à direita virou a página e já articula o pós-Bolsonaro
à vista de todos, ainda que acenos precisem ser feitos ao capitão de olho nos
votos que ele ainda é capaz de arregimentar.
Dito isso, é de justiça reconhecer que a
família Bolsonaro não é a única responsável por este circo armado em torno da
existência de uma suposta “perseguição política” no País. Convém lembrar que
partiu dos deputados petistas Lindbergh Farias (RJ) e Rogério Correia (MG) o
estapafúrdio pedido à PGR para que o passaporte de Eduardo Bolsonaro fosse
apreendido, acusando-o de tramar contra o Brasil no exterior. Em boa hora o
pedido foi rejeitado pela PGR e a queixa-crime contra Eduardo Bolsonaro,
arquivada pelo ministro Alexandre de Moraes, o que enfraquece ainda mais a tese
da “perseguição”.
É evidente que o STF, há muito tempo, tem
tomado decisões juridicamente controvertidas contra bolsonaristas, como se a
democracia brasileira ainda estivesse sob ataque permanente. Este jornal não
tem se furtado a fazer críticas contundentes às exorbitâncias da Corte
cometidas em nome de uma suposta defesa do Estado Democrático de Direito. Em
que pesem esses abusos, que de resto devem ser corrigidos pelo plenário do
próprio STF, não se pode falar em “ditadura” no Brasil sem falsear a realidade
dos fatos.
O que está em curso, portanto, é um esforço deliberado da família Bolsonaro para fabricar uma história de martírio político que sirva não apenas para galvanizar sua base de apoio mais fiel, mas também para abrir portas no exterior em busca de simpatizantes dispostos a comprar a patranha e, quem sabe, mudar a sorte de quem tem uma pesadíssima conta a acertar com a Justiça brasileira.
A paternidade dos juros altos
O Estado de S. Paulo
Meses após ascensão de Galípolo ao comando do
BC, governo ainda culpa Campos Neto pelo aumento da Selic
O Comitê de Política Monetária (Copom) do
Banco Central (BC) seguiu o roteiro ao aumentar os juros em 1 ponto porcentual,
para 14,25% ao ano, maior nível desde outubro de 2016, e entregou o que dele se
esperava ao deixar claro que o ciclo de alta da Selic prossegue na próxima
reunião, mesmo que em menor magnitude. Não havia como ser diferente num
contexto de inflação elevada, sob pressão e acima da meta, mas nada disso
impedia o governo de tentar constranger a atuação do Banco Central até então.
Com a posse de Gabriel Galípolo na
presidência do BC, tudo mudou. Chamado pelo presidente Lula da Silva de “menino
de ouro”, Galípolo substituiu Roberto Campos Neto, que havia sido nomeado pela
nêmesis de Lula, Jair Bolsonaro, e que por essa razão era sistematicamente
atacado pelos petistas sempre que os juros subiam – Gleisi Hoffmann, na época
presidente do PT, era a mais animada, acusando Campos Neto de “terrorismo
econômico” e de não “entender nada” sobre as necessidades dos trabalhadores.
Hoje ministra de Lula, Gleisi nada disse sobre a nova alta de juros. E o
silêncio, neste caso, diz muito.
Ao deixar o BC praticamente amarrado nas
reuniões de janeiro e março – orientação que, por sinal, contou com apoio
unânime no Copom –, Campos Neto garantiu uma transição suave e sem críticas
para Galípolo. Mas é improvável que o atual presidente do BC conte com a mesma
condescendência na próxima reunião, nos dias 6 e 7 de maio. Sobre ela, só se
sabe que os juros não subirão 1 ponto porcentual, o que significa que poderão
aumentar até 0,75 ponto porcentual. Depois disso, tudo dependerá do “firme
compromisso de convergência da inflação à meta”, como diz o Copom.
Atingir esse objetivo ainda parece distante.
Para os 12 meses encerrados em setembro de 2026, que corresponde ao horizonte
relevante que guia suas ações, o Copom reduziu a projeção de inflação de 4%
para 3,9%, mas ela segue acima da meta. O câmbio pode ter contribuído com esse
pequeno alívio, já que o comitê levou em conta uma cotação de R$ 5,80 em março,
ante R$ 6,00 em janeiro. Os investidores projetam que a Selic pode chegar a 15%
ao ano, e o comunicado do BC sugere que o fim desse ciclo, iniciado em setembro
do ano passado, está próximo. O Copom vê sinais de uma “incipiente moderação”
no crescimento, mas reconhece que a inflação e seus núcleos estão acima da meta
e que o mercado de trabalho continua forte.
Na falta de um discurso melhor, o governo
optou por culpar Campos Neto – que servirá como bode expiatório até o início de
maio. Repetindo o que Lula havia dito em janeiro, o ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, afirmou que Galípolo não poderia dar um “cavalo de pau” ao
assumir o comando do BC, pois teria uma “herança” a administrar. Só faltou
dizer que era uma herança maldita.
Se o governo colaborasse e fizesse sua parte, talvez os juros já estivessem em níveis mais civilizados. Mas há muitas outras medidas no forno do Executivo que visam a manter a demanda aquecida até a eleição no ano que vem e que devem contribuir para que os juros sejam mantidos em níveis bastante elevados. A ver quem o governo responsabilizará nos próximos meses.
O alto custo de uma vida saudável
Correio Braziliense
Entre 2 mil pessoas das classes A, B e C de
todo o país ouvidas no levantamento Do prato ao copo, 61% afirmaram que têm
evitado comprar algum produto devido ao impacto no bolso
O brasileiro está preocupado com a qualidade
do que consome, mas esbarra na questão do preço dos alimentos. Entre 2 mil
pessoas das classes A, B e C de todo o país ouvidas no levantamento Do prato ao
copo: como os brasileiros tomam suas decisões no consumo de alimentos e
bebidas?, feito pela empresa de pesquisas MindMiners, 61% afirmaram que têm
evitado comprar algum produto devido ao impacto no bolso.
Esse incômodo (totalmente justificável) com a
alta dos preços tem sido percebido pelo próprio governo e por seus aliados como
principal fator para a queda na popularidade da gestão Lula. Dados de pesquisa
Datafolha divulgados há uma semana mostram que o indicador despencou e chegou
ao nível mais baixo de todos os mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva. A aprovação caiu de 35% para 24% em dois meses; e a reprovação
seguiu trajetória inversa: subiu de 34% para 41%.
Medidas para conter a elevação dos preços e
aliviar o custo de vida têm sido anunciadas claramente como ações para reverter
essa má impressão. Foi o caso da decisão, no início deste mês, de zerar a
alíquota de importação de nove produtos alimentícios — entre eles, carne,
açúcar, café, azeite, milho, biscoitos e massas — e o projeto, apresentado
nesta semana, para isentar do Imposto de Renda as pessoas que recebem até R$ 5
mil mensais.
Mas o consumidor não pode esperar. Com os
preços nas alturas, os brasileiros estão repensando a maneira de comprar,
especialmente no que diz respeito à carne vermelha. Voltando ao levantamento da
MindMiners, ao responder à pergunta O que você tem evitado comprar devido ao
preço elevado?, as cinco respostas mais comuns foram: carnes, queijo e
laticínios, azeite, bebidas alcoólicas e refrigerante.
E o ovo, muitas vezes opção como substituto
da carne, também não traz alívio às despesas domésticas. Vários fatores podem
ter contribuído para a alta do preço da proteína, como questões climáticas, que
afetaram a produção, o aumento da demanda, o preço de insumos (milho e farelo
de soja, que compõem 80% da ração das galinhas, em média) e, por fim, a
Quaresma. O fato é que, no atacado, em fevereiro, o consumidor pagou 40% a mais
em diversas regiões produtoras do país, segundo o Centro de Estudos Avançados
em Economia Aplicada (Cepea - Esalq/USP). Trata-se do maior aumento do segmento
de alimentação e bebidas, e de um produto até então conhecido pela
acessibilidade e pelo valor nutritivo.
A boa notícia apontada pela MindMiners é o
interesse dos brasileiros por produtos e alimentos que oferecem benefícios à
saúde — 32% dos respondentes buscam itens que auxiliam no fortalecimento do
sistema imunológico e 26% desejam opções que ajudem no controle ou na
manutenção do peso. Mais detalhadamente, o levantamento revelou que 25%
preferem alimentos e bebidas que proporcionem mais energia e disposição no dia
a dia; 24% valorizam produtos que contribuam para o foco e a saúde mental; e
22% se preocupam com a proteção da saúde cardiovascular.
Mas aí, novamente, esbarram na questão dos preços. O principal obstáculo apontado para o consumo de alimentos e bebidas saudáveis é o custo. Metade dos entrevistados respondeu assim, seguido pela dificuldade de mudar antigos hábitos (41%).
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