O Globo
São 141,4 mil contribuintes capazes de
oferecer alívio a 10 milhões
Mais que cumprir promessa da campanha de 2022 ou anabolizar a popularidade enfraquecida do presidente da República, o Projeto de Lei que isenta de Imposto de Renda os brasileiros que ganham até R$ 5 mil tem a missão de pôr fim a um tabu quase secular do país: os privilégios tributários dos muito, muito ricos. Quando tomou posse no Ministério da Fazenda, Fernando Haddad prometeu apresentar — e aprovar — a reforma dos impostos sobre o consumo e sobre a renda. A primeira passou pelo crivo do Congresso Nacional em 2023; foi regulamentada no ano passado; entra em vigor a partir de 2026 — não sem benesses concedidas a setores eficientes no lobby. A outra pôs a cabeça para fora, de verdade, nesta semana; e já começa a apanhar.
A isenção de IR sobre rendimentos de até R$ 5
mil foi apresentada na forma não de Medida Provisória (com aplicação imediata e
aprovação subsequente), mas de Projeto de Lei. Uma sinalização inequívoca de
disposição do governo em dialogar com o Congresso Nacional e também com a
sociedade. Foi comunicada em cerimônia no Palácio do Planalto recheada de
exemplos práticos de quanto a situação financeira pode melhorar para a classe
média com o alívio do Leão, de 2026 em diante, se a proposta sair do papel. Um motorista
com salário de R$ 3.650, aproximadamente, deixará de recolher R$ 1.058 por ano;
uma professora que ganhe R$ 4.867, cerca de R$ 3.970; um autônomo com
rendimento de R$ 5.450, quase R$ 3.200; uma enfermeira com remuneração de R$
6.260 terá R$ 1.822 a mais no bolso sem a mordida do IR.
Foram exemplos escolhidos a dedo, certamente,
pelo novo titular da Secretaria de Comunicação, Sidônio Palmeira, para mostrar
que tipo de brasileiro será beneficiado pela isenção. Sem ingenuidade, é medida
que mira resgatar a aprovação perdida pelo presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, desde a virada do ano. Mas é também ação (quase inédita) para escancarar
aos trabalhadores em que posição da pirâmide social se encontram, quem eles
são, não a quem aspiram ser. De cara, a Fazenda avisou que aplicar uma alíquota
de até 10% de IR efetivo entre os que ganham a partir de R$ 600 mil anuais
permitiria compensar toda a isenção oferecida aos que não passam de R$ 60 mil.
São 141,4 mil contribuintes capazes de oferecer alívio a 10 milhões.
O chá de revelação da desigualdade tributária
já produziu muxoxos no mercado financeiro, no Congresso Nacional e no PL,
partido do ex-presidente hoje em cruzada por anistia pelo golpe de Estado
tentado em 2023. Espera-se euforia entre os potenciais beneficiados, sobretudo
mulheres, negros, nordestinos, sempre majoritários nos estratos de menor
rendimento. É alívio bem-vindo, especialmente em tempos de comida cara e
endividamento galopante pelos juros estratosféricos — o Banco Central elevou a
Selic para 14,25% na última quarta-feira, maior nível em uma década. A isenção
do IR até R$ 5 mil é das poucas unanimidades num Brasil ideologicamente
fraturado. Em dezembro de 2024, a Quaest apurou em pesquisa que 75% dos que
votaram em Lula e 77% dos que preferiram Jair
Bolsonaro no segundo turno de 2022 apoiam o projeto.
Mas há parlamentares acenando com cortes
noutras despesas e até mesmo na desoneração a empresas para manter intocado o
privilégio tributário dos ricos. A conta pode até fechar com a arquitetura
financeira alternativa, mas não produzirá justiça tributária, objetivo contido
na proposta governamental. O economista Marcelo Medeiros, pesquisador no Ipea e
professor visitante na Universidade Columbia (Nova York), publicou em 2023 “Os
ricos e os pobres – O Brasil e a desigualdade”. No livro, ele diz:
— Políticas orientadas aos pobres têm impacto
limitado sobre a desigualdade. Toda a assistência social brasileira muda muito
pouco a concentração de renda no país. Isso é previsível, afinal a maior parte
da desigualdade no Brasil está relacionada às diferenças dentro dos ricos e
entre os ricos e os demais. Desigualdade tem a ver com riqueza, não com
pobreza. Por isso políticas que afetam os mais ricos têm potencial maior de
combate à desigualdade. A política tributária é uma delas.
No ambiente político brasileiro, em que o
poder é tão concentrado quanto a renda, a tributação de rendimentos e riqueza é
debate interditado. Para uns manterem privilégios, outros precisam contribuir
mais, indefinidamente. Ao longo de décadas, o país vem se esquivando de debater
justiça tributária, tal como fez com o fim da escravidão, com os direitos
trabalhistas das domésticas e, recentemente, com o fim da jornada de seis dias
de labuta por um de folga, a 6 x 1. A isenção de IR para a massa que ganha até R$
60 mil por ano — 90 milhões dos 100 milhões de brasileiros que contribuem — é
agenda mais de justiça e reparação que de responsabilidade fiscal e gestão
orçamentária. Está servida a torta de climão. As Excelências não poderão
escolher de que lado estão.
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