sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Aos desafortunados e incultos, a lei

Maria Cristina Fernandes
DEU EM O VALOR ECONÔMICO


Quanto mais rico e escolarizado menos o brasileiro confia e recorre à Justiça. A conclusão poderia ter sido tirada das filas de qualquer tribunal de pequenas causas, mas está baseada na mais rigorosa pesquisa sobre a confiança no Judiciário já realizada no país.

O levantamento, de iniciativa da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, baseou-se em entrevistas com 1639 pessoas em sete capitais (Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e Brasília), cujas regiões metropolitanas correspondem a um terço da população, entre abril e junho deste ano. Com essas sondagens, que devem ser trimestrais, será possível acompanhar a evolução do Índice de Confiança na Justiça (ICJ), um indicador como nunca se viu.

A primeira fornada colheu 65 pontos, o que, pela ausência de parâmetros, não diz se a confiança na justiça é alta ou baixa. Para compor o índice, mede-se a percepção e o comportamento - como o entrevistado vê a justiça e quando se lhe recorre. A imagem esbarra em 50 pontos, o que não impede que a frequência com que dela se faz uso chegue a 80.

O que salta aos olhos são as percepções distintas que se colhem entre ricos, pobres, doutores e analfabetos, mineiros e pernambucanos, sobre o funcionamento do Judiciário. Que a renda e a informação sejam inversamente proporcionais à confiança na justiça, só confirma o provérbio "aos amigos tudo, aos inimigos a lei" como patrimônio nacional. Ou melhor, da classe média para cima, que julga ter à sua disposição outras maneiras de resolver um conflito que não sejam as barras dos tribunais.

Não é outro o motivo por que as linhas de crédito para a baixa renda sejam o de menor inadimplência. Quem não tem outro recurso que não o da justiça não pode ter nome sujo na praça. Mas quem pode recorrer a uma propina, a um amigo na Receita ou à namorada do primo da cunhado na prefeitura não precisa mesmo da lei. É mais fácil por a culpa nos corruptos do Congresso Nacional.

Luciana Gross Cunha, professora de Direito da FGV e idealizadora do índice, vê neste dado de renda/informação o mais procupante para o Judiciário. Ao contrário do Congresso Nacional, onde os índices de renovação estão entre os mais altos do mundo, os juízes não podem ser mandados de volta para casa quando um crime caduca. "O índice traz o Judiciário para participar de uma discussão da qual estava ausente, que é a da legitimidade democrática", diz Luciana.

Por mais ricos não se entendam os detentores de crédito-prêmio do IPI, mas os brasileiros com renda familiar superior a R$ 5 mil. A esta classe média pesa muito uma tarde inteira numa fila de tribunal. Para os pobres, é baixo o custo de mais uma fila.

No questionário apresentam-se quatro situações para descobrir o que leva os brasileiros aos tribunais:

- O cônjuge abandonou o lar levando os filhos e recusa-se a dialogar;

- O pintor que recebeu adiantado desaparece sem realizar o serviço contratado;

- A prefeitura que fez obras na rua não assume a responsabilidade pelos danos causados em sua casa;

- A concessionária recusa-se a trocar um veículo zero entregue com um defeito irreversível;

- O vizinho faz um reforma que gera rachaduras em sua casa e tanto ele quanto o condomínio recusam-se a arcar com os prejuízos;

- O entrevistado é demitido e recebe uma indenização menor do que aquela a que tem direito.

O carro, os filhos e a indenização trabalhista são, nesta ordem, os casos que mais levariam os entrevistados à Justiça. Numa demonstração de que a ordem liberal no Brasil coexiste com um sentimento difuso de culpa, o pintor é o último dos litigantes que viria a ser importunado por um oficial de justiça.

Entre as sete capitais pesquisadas, Porto Alegre e Salvador ocupam os extremos de confiança dos entrevistados. Não é difícil entender por que. Foi no Rio Grande do Sul que pacientes dependentes de medicação de ponta conseguiram suas primeiras vitórias contra um SUS renitente, que correntistas impuseram as maiores derrotas ao sistema financeiro - todas revertidas nos tribunais superiores em Brasília - e os precatórios inauguraram precedência de pagamentos.

"Um judiciário que se vê como guardião de direitos e garantias constitucionais mas não é eficiente na prestação de serviços à população está sendo questionado no mundo inteiro", diz Luciana Gross Cunha.

A população talvez não saiba nomear todos os assessores do senador Antonio Carlos Magalhães, morto em 2007, que viraram mandatários da justiça sem nunca terem passado pela magistratura, mas pelo descrédito que confere à instituição na Bahia é capaz de avaliar o que acontece com o Judiciário quando dominada por interesses nada republicanos.

É bem verdade que a linha de atuação do judiciário gaúcho, levada ao limite nos mais de seis milhões de ações que tramitam na justiça federal, quebraria o Estado várias vezes. O que a pesquisa sinaliza é que a população sabe avaliar um Judiciário que lhe serve. É meio caminho para cobrar que valha o que custa.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

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