Os primeiros sete meses do governo de Dilma Rousseff, marcados por muitas dificuldades na frente política, tornaram inevitáveis comparações da atual presidenta com seu antecessor e mentor. Curiosamente, algumas das características da nova chefa de governo mais elogiadas pelos críticos acerbos do estilo de Lula têm sido agora apresentadas como causas de suas dificuldades políticas. Enquanto ele seria um presidente loquaz, afável e permissivo, Dilma se caracterizaria por uma grande discrição, pouca disposição para o contato direto com os políticos e uma rigidez muito grande nas negociações.
Diante de tais contrastes, seria fácil compreender o porquê de Lula ter sido tão bem sucedido na construção de uma ampla e segura rede de apoios, enquanto Dilma enfrentaria já de saída severas dificuldades na manutenção da lealdade de sua base. Em alguns momentos, a dureza do estilo da nova presidenta é lastimada de forma severa e até mesmo ameaçadora por membros da coalizão partidária. Foi o que fez, por exemplo, o deputado do PDT paulista, Paulo Pereira da Silva, em matéria publicada anteontem no Valor. Diante da ação implacável da chefa de governo no Ministério dos Transportes, Paulinho afirmou: "Se for assim, se esse tratamento valer para toda crise, teremos que tratá-la [Dilma] dessa forma quando houver uma denúncia envolvendo a presidente".
A ameaça nada velada de Paulinho ganha ainda mais força se, novamente, contrastarmos Lula com Dilma. A maior condescendência do ex-presidente com seus aliados, mesmo quando denúncias surgiam, teve como contrapartida a proteção que em torno dele se criou nalgumas ocasiões, principalmente à época do mensalão. Mesmo Roberto Jefferson, o pivô do escândalo, procurou preservar a figura do presidente do centro das falcatruas, apontando-o muito mais como um líder traído do que como o chefe da conspiração, que teria o (muito mais afeito à imagem de conspirador) apparatchik José Dirceu como seu articulador.
Os líderes petistas de projeção nacional que escaparam à tragédia do mensalão soçobraram pouco tempo depois: Antônio Palocci, com o escândalo do caseiro; Aloizio Mercadante, com o imbróglio dos aloprados. Lula sempre defendeu até o limite do possível seus auxiliares (na maior parte dos casos, petistas), defenestrando-os do governo apenas quando seus próprios problemas os catapultavam para fora dele. Assim, o presidente parecia apenas aceitar resignado a renúncia de auxiliares politicamente moribundos, aos quais não restava mesmo outra alternativa. No caso dos ministros, seu afastamento ocorria ainda com um simbólico ato de reconhecimento dos serviços prestados, mediante as cerimônias de transmissão do cargo.
Ironicamente, contudo, foi a dizimação de líderes petistas a principal causa do surgimento de Dilma como virtual candidata à Presidência da República pelas mãos do preservado e popularíssimo Lula. Ao PT não restava nenhum nome que tivesse projeção nacional, fosse da confiança de Lula e, sobretudo, fosse minimamente consensual no partido - principalmente em sua coalizão interna dominante, o Campo Majoritário. Tarso Genro, o homem para todas as empreitadas difíceis (Conselho de Desenvolvimento, Educação, Presidência Interina do PT, Articulação Política e Justiça), era demasiadamente controverso dentro do partido - principalmente por seu antagonismo com José Dirceu. Assim, embora Tarso desfrutasse de potencial eleitoral e tivesse sobrevivido aos escândalos, sua eventual indicação pelo presidente conflagraria o PT.
Dilma, filiada ao PT apenas no início dos anos 2000 e tendo uma trajetória muito mais afeita à ocupação de cargos governamentais que a lutas intrapartidárias, não tinha maiores vínculos com qualquer corrente petista, não suscitando assim grandes resistências a seu nome. Para um partido desprovido de melhor alternativa (até mesmo porque Lula não alimentou a tese do terceiro mandato consecutivo), a candidata internamente incontroversa e eleitoralmente turbinada pela grande popularidade do presidente converteu-se numa dádiva. Aquilo que opositores denunciaram como um mexicano "dedazo" pode ser melhor descrito como uma salvadora solução arbitrada. Lula era o único que, na situação de vácuo de lideranças do PT, poderia transferir externamente popularidade para um nome e arbitrar internamente a definição sucessória.
Todavia, se o perfil de Dilma foi vantajoso na criação da candidatura no período entre o mensalão e a sucessão, pode agora representar uma debilidade exatamente no âmbito em que funcionou melhor antes: o apoio intrapartidário. Como a presidenta não é uma petista "autêntica", de "origem" e nem possui vínculos estreitos com as diversas frações do partido, a motivação do aparelho do PT para defendê-la incondicionalmente é muito menor. Isto tende a ocorrer sobretudo na medida em que certas decisões de seu governo contrariarem mais fortemente preferências partidárias bem consolidadas - sejam elas programáticas ou fisiológicas. As históricas turras de dirigentes petistas com governantes "excessivamente autônomos" no passado mostram que este risco é real.
Lula podia se dar ao luxo de contrariar impunemente o partido porque era (como ficou provado) sua tábua de salvação e porque a história do PT se confundia com a sua própria. Dilma, ou qualquer outro governante menos enfronhado com a máquina partidária, mesmo que ungido por Lula, não conta com esse mesmo poder. Tal lógica evidencia-se em manifestações como a reproduzida esta semana pela "Folha de S. Paulo", do deputado paulista Carlos Zarattini, criticando o favorito de Lula na disputa pela Prefeitura de São Paulo. Disse ele: "O Haddad é um bom nome, mas tem pouca interlocução com a base petista". Membro dileto da coalizão dominante do PT paulistano (grupo de Rui Falcão, irmãos Tatto e Marta Suplicy), Zarattini queria dizer: "O Haddad é um bom nome, mas não é um dos nossos". Se Dilma quiser saber melhor o quanto isto pode atrapalhar, poderia chamar a ex-prefeita Luiza Erundina para uma conversa.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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