As manchetes vibram o caso Siemens. A grande empresa alemã encontrou vantagens em denunciar a formação de cartel nas licitações promovidas para a aquisição de material ferroviário no Brasil.
Um olhar inocente e desinteressado não pode deixar de capturar nas reiteradas e tediosas choramingas dos moralistas a intenção de "olhar para o outro lado". O episódio Siemens tem a virtude de revelar que a proliferação de corruptos supõe a multiplicação dos corruptores. Não há venda sem compra.
Para não tropeçar nas hipocrisias, seria bom compreender a lógica que move a concorrência entre os grandes blocos de capital na economia contemporânea. Para ser mais preciso, desde o século XIX, com distintas morfologias, o movimento da grande empresa moderna é articulado pelas forças dos mercados financeiros e pela busca do controle dos mercados e das fontes de abastecimento.
Ontem como hoje, estes mercados promovem a circulação global do "capital livre e líquido", organizado sob a forma "coletiva" dos fundos de investimento, fundos de pensão e hedge funds.
Na economia movida pelas fusões e aquisições, quem não engole o concorrente corre o risco de ser deglutido por ele
O objetivo é diversificar a riqueza de cada grupo privado, centralizar o controle nas empresas integradoras que comandam a rede de fornecedores também monopolistas e, assim, ganhar maior participação nos mercados globais. Na economia movida pelas fusões e aquisições, quem não consegue engolir o concorrente corre o risco de ser deglutido por ele. Os agentes dessas operações são os grandes bancos de negócios. Eles definem os novos proprietários, os métodos de financiamento, a participação acionária dos grupos, as estratégias de valorização das ações, antes e depois das ofertas públicas.
A transferência de ativos públicos para os grupos privados não soluciona o confronto entre tais gigantes "coletivizados" e, portanto, comandados pelo poder dos acionistas. O capitalismo da grande empresa e da alta finança torna-se ainda mais promíscuo e pegajoso em suas relações com o Estado.
Os que estudam o fenômeno da generalização das praticas ilícitas e ilegais não têm qualquer dúvida em apontar como causa mais importante a infiltração da "ética dos negócios" nos negócios da política. Enquanto alguns clamam para que o Estado abandone suas pretensões de interferir na economia, a realidade dos negócios exige que ele passe a arbitrar e articular os interesses privados. Há quem aposte em fórmulas mágicas para prevenir o dinheiro mal havido e as práticas ilícitas.
A substituição dos órgãos tradicionais de vigilância e controle do Estado por agências reguladoras não realizou, nem poderia realizar, o milagre da ressurreição da livre concorrência livre, limpa e desimpedida. No caso das telecomunicações, por exemplo, a experiência internacional mostra que depois de um período breve de "concorrência" as empresas tendem a se fundir, provocando uma enorme concentração do capital e produzindo situações de monopólio. Sem independência dos reguladores e a vigilância permanente de um Congresso acima de qualquer suspeita, os usuários-consumidores vão perder a parada da fixação de tarifas e do controle da qualidade do serviço.
Os liberais nefelibatas preferiram, no entanto, refugiar-se na retórica da transparência, da livre concorrência e da igual oportunidade garantida a todos os interessados. Cascata. "Seria melhor afirmar a verdade claramente", diria o saudoso John Kenneth Galbraith.
Não há quem possa negar que a perda da capacidade de regulação do Estado é a marca registrada da convivência entre o público e o privado no capitalismo da concorrência monopolista. Os conservadores pretendem enfrentá-la reinventando o liberalismo e renovando a fé na capacidade de auto-regulação do mercado.
Robert Skidelsky, biógrafo de Keynes, ironizou o temor de Hayek de que a saúde da democracia pudesse ser afetada pela força excessiva do Estado. Muito ao contrário, diz Skidelsky, o Estado foi muito fraco para impedir a invasão, tornando-se dependente e ficando à mercê das "forças externas" que acabam anulando ou reduzindo a capacidade de gestão econômica. "Keynes superestimou a possibilidade de uma gestão econômica racional pelos governos democráticos", concluiu.
Schumpeter deplorava que a ordem criada pelo capitalismo individualista pudesse ser devastada pela força avassaladora do progresso capitalista. "Assim", dizia ele, "a evolução capitalista arrasta para o fundo todas as instituições, especialmente a propriedade e a liberalidade de corporação, que responderiam às necessidades e às práticas de uma atividade econômica verdadeiramente privada". A grande corporação, o proprietário de ações e a importância cada vez maior dos mercados em que circulavam os direitos de propriedade - os mercados financeiros - significavam a desmaterialização da propriedade, sua despersonalização. "Um possuidor de um título abstrato perde a vontade de combater econômica, física e politicamente por sua fábrica e pelo domínio direto sobre ela, até a morte se for preciso". O capítulo XII de "Capitalismo, Socialismo y Democracia" arrisca uma previsão sobre os destinos da ordem capitalista fundada na iniciativa individual: "Não sobrará ninguém que se preocupe em defendê-la". Enganou-se: é cada vez maior a força das grandes estruturas capitalistas e de seus métodos de controle na moldagem subjetiva dos indivíduos.
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
Fonte: Valor Econômico
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