No governo tirânico o governante, "ao pisar as leis da natureza, abusa da liberdade dos governados, como se eles fossem escravo? e dos bens alheios como dos seus" (Jean Bodin, Os Seis Livros da República). Já vimos de tudo na vida política brasileira. O mais comum é o uso, pelos que operam o Estado, das coisas públicas em proveito próprio. Tais grupos e indivíduos cabem na definição do tirano formulada por Jean Bodin. Eles enriquecem às expensas do erário porque são blindados por normas ilegítimas e perversas se vistas sob o ângulo ético. Nada que discrepe dos juízos emitidos no Sermão do Bom ladrão: "Se o alheio, que se tomou ou retém, se pode restituir, e não se restitui, a penitência deste e dos outros pecados não é verdadeira penitência, senão simulada e fingida, porque se não perdoa o pecado sem restituir o roubado". Bom Vieira, colega jesuíta do papa Francisco! Ele teria na conta de réprobos o maior número dos que exerceram, exercem e com muita probabilidade exercerão cargos públicos no Brasil.
Até hoje, no entanto, era inédito que um Poder, não grupos qu in4}víduos, se apropriasse indevidamente de um bem que pertence ao povo soberano (se tal expressão tem sentido no país em que sobrevivemos). Não conforta o recuo do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no convênio com a Serasa para repassar informações da cidadania em troca de benefícios para seus funcionários. A identidade cidadã é destinada aos ritos da República democrática, o dever do voto. O TSE não é dono daquele bem e não tem direito algum de o alienar. Como semelhante golpe de Estado chegou ao Diário Oficial? Difícil aceitar que as autoridades daquele Poder nada soubessem sobre o trato que privatiza a cidadania.
Quando a população sai às ruas e mostra inconformismo com a arbitrária condução dos assuntos oficiais, os Poderes tuV do fazem para aumentar a descrença e o esmigalhamento da fé pública. Parlamentares e governadores usam bens coletivos como se fossem prerrogativa do cargo, mas alguém no Senado prorrompe em falas oraculares e dogmatiza que a ética é subjetiva. Atentados similares ocorrem em todos os níveis e negam o essencial: "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência".
Se o descalabro chega a tal ponto na instituição que deve dar-nos segurança e justiça, no Legislativo o desconforto não é menor. Em recente pesquisa de opinião o Congresso tomba no franco desprezo dos que pagam impostos e não têm licenças principescas como a de foro, o privilégio de hospitalização à custa do contribuinte, casa, automóvel e outras benesses ignoradas em todos os países democráticos. A cada legislatura nova os eleitos esmigalham as esperanças neles depositadas. A qualidade da representação piora, sem que se vislumbre saída prudente para o impasse do Parlamento.
O Executivo, embora acuado, dispõe do cofre para distribuir favores aos amigos, pão e água para a oposição. E legisla, usurpa impune atribuições dos demais Poderes. Ele move a propaganda sistemática, consegue reverter^ péssima situação
Parlamentares cavam a sepultura do regime atual. Estudos sobre esse tema não faltam em que se encontra. Até onde? Até quando? Até que o atual regime constitucional seja abolido em seu proveito? O fato não seria raro na História do Brasil. Basta recordar as ditaduras do século 20 que reduziram o Judiciário e o Legislativo ao silêncio e à insignificância.
Quando os liberais defenderam o sistema parlamentar, "imaginavam ter nele um método de escolha política de dirigentes, um caminho seguro para afastar o diletantismo político e permitir o acesso só dos melhores e mais competentes à direção política. Tornou-se muito duvidosa a real competência do parlamento para formar uma elite política. Hoje em dia não somos mais tão otimistas a respeito desse instrumento de seleção; muitos já encaravam essa expectativas como obsoletas, e a palavra "ilusão" poderia facilmente aplicar-se a certos democratas. As centenas de ministros constantemente apresentados como elite política pelos inúmeros parlamentos não justificam nenhum otimismo. Mas o que é pior, e desfaz qualquer esperança, é que o sistema parlamentar conseguiu transformar todas as questões públicas em objeto de cobiça e de compromisso dos partidos e dos agregados, e a política, longe de ser a ocupação de uma elite, passou a ser a desprezível negociata de uma desprezível classe de gente".
O parágrafo acima não me pertence, mas ao jurista que mais colaborou para o reforço absoluto do Executivo contra os deputados e senadores alemães. Sim, os especialistas notaram que o trecho foi escrito por Carl Schmitt (A Crise da Democracia Parlamentar). Se trocarmos a Alemanha pré-nazista pelo Brasil de agora, a tese de Schmitt sobre os parlamentares permanece válida, para nossa melancolia. No país de Getúlio Vargas e de Francisco Campos, de Filinto Müller e do AI-5, onde a hegemonia do Executivo foi imposta a ferro e fogo, dói constatara desmoralização dos legisladores. Mas eles não se emendam. A votação do "orçamento impositivo" exemplifica o aceito de Carl Schmitt: destrói qualquer orçamento sério no País, serve aos fins eleitoreiros dos partidos e lideranças, sem preocupação com o Estado e a sociedade.
Os parlamentares cavam a sepultura do regime atual. Estudos sobre o tema não faltam. Em 2012 Fernando Bianchini, promotor de Justiça paulista, defendeu ótima dissertação de mestrado intitulada A democracia parlamentar na crítica de Carl Schmitt. Há inúmeros outros trabalhos sobre o risco autoritário no País, mas nossos representantes não os examinam, porque eles tomariam insuportável sua atuação como joguetes da Presidência federativa ou lobistas de alto coturno, sem cor republicana e democrática.
Professor da Unicamp
Fonte: o Estado de S. Paulo
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