Não dá para achar que a democracia tem de escolher entre censura prévia e difamação, obrigando a engolir uma para evitar a outra. Ou entre liberdade de expressão e respeito à privacidade e à honra pessoal. Não posso crer que pessoas inteligentes achem que artistas que encarnaram o melhor de nosso espírito na resistência à ditadura tenham virado censores truculentos, ou estejam a fim de tirar casquinha em ganhos alheios. Tampouco me convence que gente do calibre moral de Chico Buarque defenda mesmo que a História se baseie em biografias que devam ser aprovadas pelo biografado ou herdeiros, ou lhes pagar para poder difamar. Não faz sentido.
A energia gasta nessa discussão está gerando bastante calor, mas pouca luz. Nessa hora lembro de meu pai. E do livrinho, como chamava a Constituição. Quando eu era criança, lá em casa falava-se muito em consultar o livrinho. Proponho o mesmo: vamos ao livrinho. Foi o que o SNEL fez, com sua Adin sobre artigos do Código Penal que estão servindo para que nossa paquidérmica Justiça seja veloz como a lebre na proibição de livros, enquanto, como a tartaruga, deixa prescrever casos de difamação pela mídia, após investigações que se arrastam como lesmas lerdas. O SNEL resolveu perguntar ao STF se isso está certo. Afinal, o que diz o livrinho? Não sou jurista.
Só consulto o livrinho: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Tudo junto, num artigo só. Então, como não se discute o direito à reparação? Se uma revista semanal publicar uma mentira — como uma denúncia contra um inocente — no dia seguinte os jornais repercutem, depois o telejornal repete, mostra portas fechadas à guisa de comprovação, afirma que o acusado não foi encontrado. Após meses sem que a investigação encontre qualquer indício, o processo pode ser arquivado.
Nunca o autor da denúncia terá de explicar de onde ela saiu: o sigilo da fonte é sagrado. Ninguém conhecerá os interesses escusos de quem plantou a acusação. O cidadão pode ser inocentado. Mas já estará destroçado e poucos saberão de sua comprovada vida sem mácula. O interesse jornalístico na defesa é menor. A pecha fica para sempre. Um pedido de reparação tem de correr onde se publicou o texto, uma cidade grande, com muitos processos a serem examinados por poucos juízes.
Não dá tempo. Prescreve antes. Sempre a lesma lerda . Não se respeita o direito à reparação, tão sagrado quanto o da liberdade de expressão ou da privacidade. O exemplo não envolve a intimidade de artistas. Mas o mecanismo é igual. E mais um bicho entra em cena: gato escaldado tem medo de água fria. Os gatos setentões querem se defender de biografias não autorizadas. Já foram chamuscados por revistas de fofocas, entrevistas deturpadas, declarações truncadas, irresponsabilidade, falta de profissionalismo.
Queimados por repórteres, descontam nos biógrafos. Afinal, a meio caminho entre jornalismo e literatura. Que tal exigir mecanismos de reparação eficazes? Como manda o livrinho. Não por antecipação. Mas pela rápida punição da ofensa. Tem efeito didático. Duvido que os abusos continuem se os ofensores tiverem de pagar caro por eles.
Mas então a polêmica deve ir mais fundo e constatar que a Constituição não distingue os abusos praticados nas biografias dos veiculados na mídia. O que valer para um tipo de texto tem de valer para outro. O que está em jogo vai muito além de bisbilhotices ou das manias de um Rei.
Ana Maria Machado é escritora e presidente da Academia Brasileira de Letras
Fonte: O Globo
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