• O debate que não teremos este ano
- Valor Econômico
Não teremos, nesta campanha eleitoral, um debate sério sobre o tipo de desenvolvimento de que precisamos. É provável que reeditemos o confronto de 2010 entre candidatos que, apesar de todas as suas diferenças políticas, compartilhavam a ideia de desenvolvimento econômico, mesmo às custas da natureza e da qualidade de vida.
Bom exemplo disso é a convergência generalizada deles na questão do transporte individual. Ele continua sendo uma chave importante do nosso crescimento econômico. A cada crise na economia, incentivos são dados para a aquisição desse veículo, cuja proliferação em escala norte-americana - ou brasileira - é irracional e gera novos problemas. Aumenta a poluição, congestiona um trânsito cada vez pior, causa uma perda de tempo gigantesca. Mas não conheço nenhum governador de Estado brasileiro, a não ser Jaime Lerner, do Paraná, que tenha proposto parar com essa aposta insana. Mesmo a sua invenção de maior impacto para melhorar o transporte coletivo acabou sendo usada em larga medida mais no exterior, em Bogotá, do que no Brasil: o "ligeirinho" de Curitiba inspirou o Transmilênio da capital colombiana.
O que seria um debate sobre o desenvolvimento? A questão já foi levantada em anos passados por Marina Silva e Fernando Gabeira, mas não parece que vá pautar o debate deste ano. Basicamente são dois os pontos que requerem uma mudança de paradigma. O primeiro é a preservação da natureza. Nossa sociedade é a primeira na história a poder medir, cientificamente, os riscos de uma séria deterioração, ou até destruição, das condições de vida neste planeta. Por isso, é preciso cuidado com os recursos naturais: queimar no tanque do carro fósseis que demoraram milhões de anos a se formar é um absurdo sob todos os pontos de vista, inclusive econômico. Ou seja, não é coisa de maluco querer substituir os combustíveis fósseis: loucura é usá-los na velocidade atual, com efeitos predatórios. O que será do mundo em um século?
O segundo é a qualidade da vida, sobretudo, mas não só, urbana. Nossas cidades se degradam a olhos vistos. Em poucos anos, as cidades brasileiras poderão estar paralisadas. A medida mais forte tomada em duas décadas para melhorá-lo, em S. Paulo, foi um tiro no pé: o rodízio de automóveis particulares. Ele deu a ilusão de que seria viável conviver com a constante ampliação da frota. Hoje, com rodízio, a situação está pior do que na Pauliceia antes de sua implantação, na década de 1990.
Ora, nada disso está no cabeçalho dos programas de governo, nem deverá aparecer na televisão durante a campanha. Discute-se por exemplo o pré-sal, mas sempre se parte da premissa, insustentável, de que usar petróleo de alta qualidade para uma pessoa ficar parada no carro horas a fio, sozinha, não é uma enorme insensatez. Os partidos discutem como explorá-lo, se pelo Estado ou pela empresa privada, onde gastar o dinheiro que ele há de gerar, mas mal questionam se devemos torrar mais este recurso caríssimo e que será queimado uma vez por todas. Namoramos nossa própria destruição. Mas desse suicídio anunciado não se fala.
Vejamos as inundações de tantos rios que atravessam nossas cidades. As marginais do Tietê, como as de tantos outros rios, na verdade pertencem a eles. São as terras para as quais, normalmente, em caso de temporais, transbordariam. Contudo, foram ocupadas pelos automóveis e, em menor proporção, por prédios. O preço de devolvê-las ao rio é seguramente alto. Mas Seul bancou a revitalização do rio Han, que tem 40 km - mais ou menos as marginais do Tietê e Pinheiros somadas. Porque o custo de sufocar o rio com avenidas marginais é cobrado de nós todo ano, para não dizer o ano todo.
Ou o transporte público. Sem o aumento do IPTU, só restou ao prefeito paulistano Fernando Haddad, para melhorar a circulação dos ônibus, o recurso a faixas exclusivas. Elas melhoraram o transporte coletivo, enquanto deixavam clara a lei da física segundo a qual dois corpos não ocupam o mesmo lugar ao mesmo tempo. Ou o coletivo, ou o particular. Essa oposição deveria ficar clara para todos nós. Mas iniciativas emergenciais não bastam. O que tem de ser feito sairá caro, mas custará mais dinheiro - e qualidade de vida - continuar investindo na produção de carros. Só que o carro gera empregos e impostos em larga escala: por isso, de novo, o curto prazo sacrifica o longo prazo.
O que acontece hoje é que a agenda de temas a debater - e a resolver - no plano político só faz crescer. Temos ainda, como legado de meio milênio de desigualdades gritantes, uma exclusão social significativa, que é necessário vencer: essa é a pauta da pobreza e da miséria. Também contamos com uma qualidade notavelmente ruim dos serviços públicos básicos, como saúde, educação, segurança e transporte, que foram os alvos mais visíveis dos protestos de 2013: essa é a pauta das ruas, que veio para ficar. Há ainda a pauta - sobretudo empresarial - da baixa produtividade do trabalhador brasileiro, que requer esforços intensos de educação, só para iniciar.
E temos a agenda da vida, que expus nesta coluna. Cada uma destas pautas exige muito. É compreensível que vencer a pobreza e aumentar a competitividade sejam priorizados, enquanto a melhoria dos serviços públicos e uma ampla reversão do modelo de desenvolvimento demandam tanto empenho, tanto dinheiro e tanta conversão dos valores dominantes que parece mais fácil manter as coisas como estão. Mas esse estado de coisas é insustentável, nem digo a longo, já a médio prazo. É preciso mudar, em especial a que talvez seja mais importante, a agenda da vida.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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