Folha de S. Paulo
Políticas atuais de segurança pública,
orientadas por lógica de guerra contra parte da população e aposta na
letalidade policial como medida de proteção social, atualizam os métodos
empregados pelo regime militar. Autor sustenta que a situação demanda enfrentar
as heranças da ditadura em vez de tratar o
golpe de 1964 como parte da história que não deve ser remoída, como
Lula faz.
Não tenho recordação da ditadura na minha
infância, sensação que causa hoje em mim estranheza. Lembro, vagamente, as
propagandas ufanistas sobre o país que deu certo, o milagre econômico, o
progresso e o desenvolvimento de toda a nação.
Presidente, eu nasci em julho de 1964, três
meses depois do golpe de Estado e da instauração da ditadura no Brasil.
Diferente do senhor, que tinha 19 anos de idade, não lembro, obviamente, o que
aconteceu.
Acho que o senhor se lembra, presidente, de
um programa de TV chamado Amaral Netto, o Repórter, ocasião em que os supostos
êxitos do governo militar eram apresentados e exibidos à exaustão: um Brasil
que deu certo graças aos militares —aliás, fala constante de pessoas que fazem,
hoje em dia, apologia do período ditatorial.
Não era sobre um Brasil
onde pessoas eram torturadas e desapareciam. Não era sobre um Brasil
onde a miséria e a hiperinflação reinavam. Está vendo como é importante falar
de um passado que insiste em ser negado, presidente?
A vida seguiu adiante. Em 1985, se iniciou o processo de redemocratização do país. Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Federal, a nossa Constituição Cidadã, marco do retorno da democracia ao país. É o que dizem. Não foi bem isso, contudo, o que aconteceu.
Ingressei em 1982 no curso de formação de
oficiais da Polícia Militar de São Paulo e o concluí em 1984, em plena
ditadura. Durante o processo de redemocratização —vale dizer, a Assembleia
Constituinte—, pude notar a presença marcante do lobby militar, com o objetivo
de barrar mudanças na estrutura das Forças Armadas e das polícias militares no
novo texto constitucional.
Naquela ocasião, delegações de oficiais das
polícias militares estavam em Brasília o tempo todo e atuavam conjuntamente com
as Forças Armadas. O lobby deu certo: os papéis, tanto das Forças Armadas
quanto das polícias militares, são os mesmos, na essência, dos que tinham na
ditadura. Aliás, Lula, o senhor se tornou recentemente parte de um lobby
poderosíssimo em defesa da aprovação da Lei Orgânica das PMs, lei
pior que a do regime militar.
Presidente, nada mudou da ditadura para cá em
termos de segurança pública. Hoje, temos uma estrutura incompatível com os
valores democráticos presentes na nova Constituição —basta olhar a vasta
produção de dados estatísticos sobre a letalidade policial.
O Estado brasileiro, por meio das polícias,
se manifesta levando medo e desconfiança à sociedade, característica marcante
da atuação estatal durante o regime militar. Desde 1988, houve inúmeras
operações policiais, em vários estados, com cifras inaceitáveis de pessoas
mortas.
Essas operações têm em comum a falta de
transparência e a morosidade nas apurações, o discurso de guerra contra
inimigos e a aposta na letalidade policial como a única medida para alcançar a
paz social. Via de regra, foram objeto de denúncias de graves violações de
direitos humanos e de execuções sumárias, tiveram locais de crime violados e
não contaram com perícia e relatos de testemunhas adequados. Isso não é nada
diferente das operações realizadas contra os ditos subversivos nos anos de
chumbo.
Técnicas de tortura e de assassinato de
pessoas vistas como inimigas da nação foram, mesmo após 1988, ensinadas para
policiais empenhados no que acreditavam ser a defesa da sociedade contra quem
queria destrui-la. Isso aconteceu durante o regime militar, sob a instrução de
agentes estrangeiros —CIA e OPS (Gabinete de Segurança Pública dos EUA)— em
ações contra elementos subversivos, sob a égide da Doutrina de Segurança
Nacional.
O emprego desses métodos, no entanto,
persiste até hoje no dia a dia de aplicação de uma política de segurança
pública militarizada, que se traduz em uma aludida guerra contra os inimigos da
sociedade. O que mudou então, Lula? O senhor acredita, sinceramente, que o
golpe é coisa do passado?
Até hoje, presidente, policiais acreditam que
o assassinato é uma medida eficaz de proteção da sociedade. A morte de pessoas
identificadas como inimigos a serem combatidos, marginais, suspeitos etc. é
tratada como sinônimo de eficiência estatal e de segurança pública, da mesma
forma como ocorria durante o regime militar. Lula, lamento dizer, a ditadura
não ficou para trás, ao contrário do que o senhor diz: ela repercute e produz
consequências na atualidade.
Exemplo nítido disso é a conduta de
militares no governo Bolsonaro e o envolvimento deles na trama golpista agora
investigada, em atuação semelhante à ocorrida às vésperas do golpe
de 1964 —que, de acordo com suas declarações recentes, ficou para trás.
Insisto, presidente, o passado está presente.
Ao dizer que
o golpe de 1964 "já faz parte da história", o senhor
ignora as centenas de assassinatos e desaparecimentos pelo regime militar (434 pessoas,
segundo a Comissão Nacional da Verdade). O senhor ignora o
sofrimento de seus parentes, familiares e amigos.
Suas afirmações também minimizam o fato de
milhares de pessoas serem executadas todos os anos pelas polícias, hoje ditas
democráticas. Seu silêncio, presidente, em relação a determinadas operações
policiais que resultam em mortes não deixa de ser estarrecedor.
Por que silenciar em relação ao golpe de 1964
e a atuação das polícias hoje? Por que não recriar a
Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos? Por que vetar eventos
oficiais sobre os 60 anos do golpe militar em vez de fomentar a
memória a respeito da ditadura? Por que tentar apagar o passado?
A razão é o medo? Algum tipo de acordo com
quem se opõe à justiça de transição e à punição de responsáveis por crimes
durante o regime militar?
Na Argentina e no Chile, por exemplo,
militares que torturaram e assassinaram foram punidos. Veja como o cenário
institucional é bem diferente nesses países.
Isso faz falta ao Brasil. Expurgar o legado
da ditadura militar das Forças Armadas e das polícias militares é indispensável
para "tocar
este país para a frente" e garantir a preservação da nossa
democracia.
*Doutor em psicologia escolar e do
desenvolvimento humano e pós-doutorando em psicologia social pela USP
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