segunda-feira, 1 de abril de 2024

Marcus André Melo* - Lima Barreto e o crime

Folha de S. Paulo

Penso que a fortuna dessa gente que está na Câmara, no Senado, nos ministérios, até na presidência da República se alicerça no crime

Em "O Único Assassinato de Cazuza" Lima Barreto, faz através de um de seus personagens uma afirmação de grande atualidade: "Penso, ao ler tais notícias, que a fortuna dessa gente que está na Câmara, no Senado, nos ministérios, até na presidência da República se alicerça no crime, no assassinato, que acha você?". Ao que seu interlocutor retruca:

- Já houve quem dissesse que, quem não mandou um mortal deste para o outro mundo, não faz carreira na política do Rio de Janeiro.

Mas o ponto que escolhi para uma análise mais detida vem depois:

- Você sabe o que dizem esses políticos que sobem às alturas com dezenas de assassinatos nas costas?

- Não.

- Que todos nós matamos.

A primeira reação do autor de um crime é a negação; a segunda, que todos fazem o mesmo. A crença de que a fortuna e a carreira política assentam-se no crime não é sem consequências. Se todos acham que a corrupção é a regra do jogo, estamos em uma armadilha. Quando práticas escusas são percebidas como a regra, o ator que joga limpo se verá como um "otário". Os incentivos nessa situação são para jogar sujo (recorrendo à violência ou a corrupção), esperando que os demais também o façam.

Há forte correlação entre a crença de que "a corrupção é generalizada" e a de se considerar que "pagar propina é justificável". Um estudo experimental mostrou que a exposição à informação sobre o aumento da corrupção na Costa Rica produzia aumento de 28% na propensão a pagar propina em relação a um grupo de controle.

A cientista política Nara Pavão em estudo experimental mostrou que quando todas as alternativas são vistas como corruptas, o efeito da corrupção desaparece. O impacto da informação que um gerente da Petrobras havia devolvido meio bilhão de reais e que a Odebrecht tinha um departamento inteiro, com servidor na Suíça, dedicado a propinas foi avassalador. Após o caso JBS-Aécio a crença em um mar de lama se generalizou. A ascensão de Bolsonaro e a renovação parlamentar em 2018 não são consistentes, no curto prazo, com a ideia do efeito "mar de lama".

A atual reação contra a Lava Jato é marcada pela negação. Mais importante, vai contra as crenças do eleitorado e mostra a resiliência da aversão à corrupção. Em nosso país, o hiato entre expectativas normativas e crença sobre a prevalência da corrupção política é o maior da região. Enquanto apenas 10,1% dos entrevistados do LAPOP 2023 afirmam que é admissível pagar uma propina, o menor percentual da região (México, 22%; Uruguai 11,4%; Chile, 12.5%); só somos superados na percepção da corrupção entre os políticos pelo Peru (78.8%). A Argentina (71%) e Chile (70%) têm percentuais próximos ao nosso (75%).

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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