Prisão de bicheiro traz oportunidade contra o crime
O Globo
Desta vez, Justiça não deveria impedir que
Rogério Andrade fique preso e que sua quadrilha seja desbaratada
A prisão do bicheiro Rogério Andrade, na manhã desta terça-feira no Rio de Janeiro, representa um passo importante no enfrentamento à máfia dos jogos de azar que há anos, graças à leniência das autoridades, protagoniza uma guerra sangrenta pela disputa de território na cidade. Sobrinho do conhecido bicheiro Castor de Andrade, que morreu em 1997, Rogério é acusado de ser o mandante do assassinato do também contraventor Fernando Iggnácio (genro de Castor) em novembro de 2020. Na decisão judicial , Rogério é citado como chefe de um grupo criminoso “voltado para a prática de diversos crimes”, entre os quais homicídio, corrupção, contravenção e lavagem de dinheiro.
O assassinato de Iggnácio foi motivado,
segundo o MP, pela disputa pelo controle da exploração de jogo do bicho,
videopôquer e máquinas de caça-níquel. Rogério e mais cinco foram denunciados
por homicídio triplamente qualificado. O crime é apenas uma parte visível da
guerra sem fim travada pelos contraventores. Em 1998, Paulo Roberto de Andrade,
filho de Castor, fora assassinado na Barra da Tijuca com um segurança. Iggnácio
assumiu seus pontos de jogo. Noutro episódio sangrento, em abril de 2010 o
filho de Rogério morreu em atentado.
Está certa a Justiça em determinar que ele vá
para um presídio federal de segurança máxima, com Regime Disciplinar
Diferenciado, mais restritivo. A própria decisão judicial ressalta que Rogério
tem contatos na área de segurança. Há muito são conhecidas as relações
promíscuas entre contraventores e policiais. Ficou famosa a frase de Castor
durante o estouro de sua fortaleza em março de 1994: “Que polícia é esta?”. A
operação era tocada por um grupo restrito de promotores e PMs do Serviço
Reservado que não constavam da “folha de pagamento” do bicho. A histórica
operação, em que foi apreendida uma lista detalhando propinas pagas a políticos
e agentes públicos, escancarou o modo de agir da contravenção, mantido até
hoje.
A despeito de a operação contra Rogério se
chamar Último Ato, não se sabe quanto tempo ficará preso. O prende-solta se
tornou rotina na vida dele — e diz muito sobre os labirintos da Justiça
brasileira e a incapacidade dos investigadores de produzir provas robustas que
levem à condenação. Em março de 2021, o MP já denunciara Rogério pela morte de
Iggnácio. Mas, em fevereiro de 2022, a Segunda Turma do Supremo Tribunal
Federal trancou a ação. Os ministros entenderam que a denúncia não descrevia o
modo de participação de Rogério como mandante do assassinato. Desta vez, a
Justiça não deveria impedir que ele seja punido e sua quadrilha desbaratada.
Impressiona que contraventores com extensa
ficha criminal mantenham vida social agitada, sob o olhar complacente de
autoridades e da sociedade. Rogério é patrono da escola de samba Mocidade
Independente de Padre Miguel, uma das mais populares do Rio. Sua mulher,
Fabíola Andrade, desfila como madrinha de bateria da agremiação. Nos desfiles,
contraventores se esbaldam em camarotes do Sambódromo, por vezes frequentados
por autoridades e figuras do meio jurídico.
Independentemente das batalhas jurídicas que
costumam cercar esses casos, MP e polícia não podem baixar a guarda. As
autoridades precisam fechar o cerco contra essa máfia que comete os crimes mais
brutais, depois vai se divertir no Sambódromo.
É positivo acordo para indenizar vítimas da
tragédia de Mariana
O Globo
Desfecho da negociação não supre todas as
perdas, mas traz reparação e compensações necessárias
Próximo de completar nove anos, o maior
desastre ecológico da História brasileira enfim é objeto de um acordo razoável.
A mineradora Vale e
a anglo-australiana BHP Billiton, sócias na Samarco, fecharam na semana passada
um entendimento segundo o qual desembolsarão R$ 132 bilhões, além dos R$ 38
bilhões já desembolsados, para compensar os danos provocados pela ruptura da
Barragem do Fundão, em Mariana (MG).
O desastre, em 5 de novembro de 2015, liberou
43,7 milhões de m³ de lama, volume comparável ao do Pão de Açúcar. O rio de
lama contaminada por rejeitos de mineração matou 19 pessoas, atingiu a Bacia do
Rio Doce e, depois de percorrer 670 quilômetros, chegou ao mar no Espírito
Santo. A população ribeirinha foi atingida, incluindo comunidades de
pescadores, que tiveram de parar de trabalhar. Ao todo foram afetados 49
municípios — 38 mineiros e 11 capixabas.
Levando em conta as características inéditas
do desastre, sua dimensão e a abrangência do entendimento a que se chegou na
Justiça, foi positivo o desfecho das negociações que envolveram, além de Vale e
BHP, os governos federal, de Minas e Espírito Santo, Ministérios Públicos,
Defensorias Públicas e diversas organizações e entidades civis ligadas ao meio ambiente.
Como toda reparação, o resultado não trará de volta tudo o que foi perdido. Mas
é um desfecho à altura de capítulo tão doloroso.
Por meio da Fundação Renova, criada em 2016
como parte de um termo de ajuste de conduta firmado com União, governos
estaduais e organismos ambientais, Vale e BHP já destinaram R$ 38 bilhões a 415
mil pessoas, incluindo comunidades indígenas e quilombolas. A estimativa é que,
agora, com a extinção da fundação, 300 mil famílias sejam beneficiadas por mais
R$ 32 bilhões, transferidos diretamente pela Samarco num prazo de dois anos. A
indenização por pessoa é estimada em R$ 35 mil, ante média de R$ 18 mil em casos
semelhantes. Para pescadores e agricultores prejudicados, serão destinados R$
95 mil. Os R$ 100 bilhões restantes serão repassados durante 20 anos ao BNDES,
com o objetivo de financiar a recuperação ambiental e projetos apresentados por
comunidades locais. Estão previstos recursos para aumentar o custeio da rede do
SUS na Bacia do Rio Doce.
Com o acordo, ficam extintas no Brasil 181
ações civis públicas, incluindo as por danos morais e danos coletivos. Mas
persiste uma ação de reparação impetrada em Londres contra a BHP pelo
escritório Pogust Goodhead, em nome de 620 mil atingidos pelo rompimento da
barragem. O escritório é especializado em processos relacionados ao direito
ambiental e direitos humanos movidos contra grandes conglomerados, e o caso é
considerado um dos maiores na Justiça britânica. O julgamento começou na semana
passada. O acordo fechado no Brasil, com aval de tantas instâncias públicas e a
adesão de tantos afetados, será um trunfo da BHP. Como não será possível às
vítimas receber duas indenizações — e a brasileira está assegurada —, o
processo britânico tende a se esvaziar.
Terras-raras são trunfo do Brasil na disputa geopolítica
Valor Econômico
Governo e setor privado no Brasil precisam se
mobilizar para capturar uma fatia dos investimentos futuros
O Brasil tem uma carta relevante para jogar
na sua relação com os países ricos do Ocidente. Com a tensão crescente entre
EUA e China, Washington vem buscando desenvolver uma cadeia própria de produção
de minerais estratégicos. As reservas brasileiras de terras-raras constituem
ativo importante, e o Brasil pode se tornar parceiro preferencial.
As terras-raras são um conjunto de 17
elementos químicos com algumas propriedades particulares, como magnetismo
intenso. São essenciais em aplicações como super-ímãs, motores de veículos
elétricos, HD de computadores e catalisadores químicos. No setor de defesa, são
utilizadas na fabricação de aviões, submarinos, mísseis, drones e lasers, entre
outros.
A China tem as maiores reservas comprovadas
de terras-raras, com cerca de 44 milhões de toneladas, segundo os dados mais
recentes do Serviço Geológico dos EUA (USGS). Em seguida vêm Vietnã (22
milhões), Brasil (21 milhões), Rússia (10 milhões) e Índia (6,9 milhões). As
reservas brasileiras podem ser ainda maiores, pois houve pouca prospecção na
Amazônia. Quase tudo o que se conhece está em areias no litoral ou perto de
vulcões extintos, como em MG e GO.
Os EUA detêm apenas 1,8 milhão de toneladas.
Nenhum país da Europa ocidental tem reservas significativas. Assim, dos cinco
países com as maiores reservas, o Brasil é certamente o único aliado confiável
dos EUA. É também o único fora da Ásia, e a proximidade é uma segurança
adicional.
Além de ter as maiores reservas, a China
domina a produção mundial de terras-raras. Das 350 mil toneladas produzidas em
2023, segundo o USGS, a China respondeu por 240 mil (quase 70%), seguida por
EUA (43 mil), Mianmar (38 mil), Austrália (18 mil) e Tailândia (7,1 mil). O
Brasil produziu apenas 80 toneladas. Ou seja, as reservas brasileiras são
praticamente inexploradas.
O negócio das terras-raras em si é pequeno,
mas está crescendo. A produção mundial dobrou nos últimos cinco anos. E
provavelmente continuará aumentando, já que a demanda mundial por produtos
intermediários que as têm como insumo deve continuar em alta, puxada pela
transição energética.
A dependência das terras-raras chinesas é uma
das maiores vulnerabilidades estratégicas do Ocidente em relação à China. Num
momento em que os EUA buscam restringir o acesso de Pequim a tecnologias
avançadas, como chips mais modernos, existe sempre a possibilidade de a China
retaliar limitando o acesso ocidental às terras-raras. Isso em parte já
ocorreu. Em 2023, Pequim proibiu a exportação de tecnologia de extração e
processamento desses elementos, para dificultar a produção em outros países.
Para enfrentar essa vulnerabilidade, os EUA
vêm buscando ativamente desenvolver uma cadeia de produção de terras-raras em
países aliados. Junto com Alemanha, Japão, Canadá, Austrália e França, entre
outros, os EUA montaram a Minerals Security Partnership, com objetivo declarado
de criar uma cadeia de suprimento diversificada, segura e sustentável para
minerais críticos. A oportunidade para o Brasil está em se inserir nessa cadeia
ligada ao Ocidente.
Os principais obstáculos para o Brasil são
dificuldades técnicas do processamento, que envolvem tecnologias que o país não
domina completamente, principalmente no caso dos produtos intermediários, como
os super-ímãs; os investimentos elevados; e a concorrência da China. É
improvável que qualquer país consiga concorrer com os chineses em preço.
A questão da concorrência com o produto
chinês, no entanto, poderá ser contornada diante da necessidade estratégica
americana de assegurar o suprimento de terras-raras no longo prazo. Se os EUA
quiserem diversificar em relação à China, terão de pagar um prêmio. É mais
fácil negociar esse prêmio com empresas de defesa, que vendem basicamente para
os governos nacionais. Mas é difícil equacionar com empresas de outros setores,
como carros elétricos, computadores e geradores eólicos. Quem financiará o
custo extra dessas empresas? Isso ainda não está claro. Quanto à tecnologia,
parte dela é dominada por empresas ocidentais e parte terá de ser desenvolvida,
o que também abre uma avenida de cooperação para que empresas e instituições
brasileiras participem.
Há muitas negociações em andamento nesse
sentido. Uma delas já rendeu frutos. A brasileira Mineradora Serra Verde,
apoiada por capital ocidental, começou neste ano a produção comercial de
concentrado de terras-raras na sua jazida em Minaçu (GO). A empresa pretende
produzir 5 mil toneladas anuais, com potencial de dobrar a produção até 2030.
Isso colocaria o Brasil entre os maiores produtores mundiais.
Mas essa janela de oportunidade pode não
durar muito, à medida que essa nova cadeia de suprimento ligada ao Ocidente for
sendo montada. A Austrália, com cerca de um quarto das reservas brasileiras,
anunciou um segundo grande projeto de terras-raras. Governo e setor privado no
Brasil precisam se mobilizar para capturar uma fatia dos investimentos futuros.
Um desafio é convencer os americanos de que o
Brasil é e seguirá sendo um parceiro confiável do Ocidente. Nesse sentido, a
retórica antiamericana de parte do governo e do PT certamente não ajuda.
Tarifa de ônibus deve ser definida sem
populismo
Folha de S. Paulo
Prefeito de SP se vê pressionado sobre
reajuste; cálculo deve prever sustentabilidade do sistema com equilíbrio fiscal
Bastaram apenas algumas horas para que a
realidade começasse a sobrepujar a empolgação com a vitória de domingo (27).
Despido do figurino de candidato, o prefeito reeleito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), teve de
lidar já no dia seguinte com um tema espinhoso para qualquer gestor municipal:
o valor da tarifa de ônibus.
Questionado pela imprensa, Nunes não
descartou eventual reajuste na passagem a partir do ano que vem. "Em
dezembro, havendo possibilidade, a minha vontade é manter. Se por acaso a gente
não tiver possibilidade, aí eu vou explicar para a sociedade."
Trata-se de uma explicação que envolve
bilhões de reais. Com a tarifa artificialmente mantida em R$ 4,40 desde janeiro
de 2020, o
subsídio repassado às empresas de ônibus para mantê-la assim
vem aumentando nos últimos anos e deve consumir só em 2024 R$ 6,5 bilhões
—quase metade do orçamento do transporte.
Executada a fórceps, a manobra é pouco
justificável quando se observa que trens e metrôs, cujos modais são de
responsabilidade estadual e complementares aos coletivos por meio das
integrações, reajustaram as tarifas de R$ 4,40 para R$ 5 em janeiro.
Não há mágica nas finanças públicas: se fosse
aplicada a inflação dos
últimos quase quatro anos, a tarifa deveria custar hoje em torno de R$ 5,77
(31,2% a mais).
Logo, o aparente alívio no bolso dos
passageiros nesse período impôs gastos fabulosos ao contribuinte paulistano. A
prefeitura também poderia ter investido esses bilhões em outras áreas
essenciais, como a ampliação da rede de saúde e do programa de moradias,
promessas de Nunes.
A cautela do prefeito ao protelar ao máximo a
decisão é, em parte, compreensível. Na capital, trata-se de tema sensibilíssimo
desde junho de 2013, quando um aventado aumento de R$ 0,20 nos transportes
impulsionou uma onda de protestos que depois se alastrou por todo o país.
Nunes afirma que a pressão inflacionária, de
modo geral, e o preço do diesel serão
determinantes para projetar o valor da passagem. O avanço inaudito das
gratuidades, contudo, também deve ser posto na balança.
Em dezembro de 2023, o prefeito implementou a
tarifa zero aos domingos, o que deverá provocar uma renúncia de receita de R$
240 milhões ao ano.
Outra promessa de campanha é o "Mamãe
Tarifa Zero", programa que concede isenção a cerca de 150 mil mulheres que
têm filhos nas creches municipais. Se de fato levado adiante, terá impacto
considerável na conta final.
As gratuidades são políticas públicas
legítimas, mas devem estar restritas aos estratos mais vulneráveis da população
e alinhadas à sustentabilidade do sistema.
Com um Orçamento recorde de R$ 123 bilhões
para o ano que vem, quase 10% maior que o de 2024, cabe ao prefeito estabelecer
prioridades à luz do equilíbrio fiscal, sem
malabarismos populistas nem postergações ao sabor de
conveniências eleitorais.
Mundo tem ajuste econômico difícil pela
frente
Folha de S. Paulo
FMI aponta necessidade de controle global dos
gastos públicos; no Brasil, desequilíbrio fiscal leva à alta dos juros
As novas projeções do Fundo Monetário
Internacional para a economia mundial apontam redução adicional da inflação —de
6,7% em 2023 para 5,8% neste ano e 4,3% em 2025— num contexto de crescimento
estável em patamar razoável, de 3,2% anuais neste ano e no próximo. Não houve
alteração relevante desde as estimativas anteriores, de abril.
Por trás da aparente boa situação, porém,
esconde-se a necessidade de delicada gestão econômica para fazer frente aos
múltiplos riscos existentes.
A queda da inflação desde 2022, sem que tenha
ocorrido uma recessão mundial, é um sucesso inesperado diante da sequência de
choques desde a pandemia, com o inédito salto nos gastos públicos e a alta nos
preços das matérias-primas em decorrência da guerra na Ucrânia.
O combate às pressões de preços se deu com um
aumento sincronizado dos juros globais,
que agora dá sinais de arrefecimento. Para o FMI, os
próximos dois anos demandam um arranjo na direção de cortes nas taxas, de um
lado, e ajuste fiscal, de outro.
Tal calibragem é difícil, pois depende de
decisões orçamentárias de ampla repercussão —ainda mais num contexto mundial de
instabilidade geopolítica e incertezas eleitorais.
Sobretudo nos Estados
Unidos, com uma eventual vitória de Donald Trump,
há risco de combinação de expansão dos gastos públicos com tarifas de
importação elevadas e restrições à imigração.
O impacto dessas políticas seria mais inflação
e a possível interrupção da queda dos juros no principal centro
financeiro global, com consequências para todos os países na forma de alta do
dólar e do custo do dinheiro.
Para o Brasil, a visão do FMI não deixa de
incorporar aspectos positivos. O país teve a maior revisão positiva para o
crescimento do PIB, de 2,1% para
3% neste ano, entre as principais economias, uma rara boa notícia.
Contudo o descompasso entre as políticas
fiscal e monetária é especialmente agudo aqui. A expansão da atividade é
impulsionada pelo enorme
aumento dos gastos públicos, algo insustentável ante a escalada da
dívida.
Ao contrario do que se observa nas principais
regiões, no Brasil os juros estão subindo devido à renitente pressão
inflacionária. Não se descarta que a taxa do Banco Central chegue
a 12,5% anuais nos próximos meses.
É necessária uma correção de rumos, com
controle de despesas para conter pressões inflacionárias e evitar um arrocho
monetário recessivo. Adiar o inevitável exporá o país a riscos crescentes.
A vez de Dirceu no festim da impunidade
O Estado de S. Paulo
O STF continua a reescrever a história do
Brasil. Agora, Gilmar Mendes livra o ‘guerreiro do povo brasileiro’ que havia
sido condenado com provas robustas no escândalo do petrolão
Os “editores de um país inteiro”, como disse
o ministro Dias Toffoli a propósito do Supremo Tribunal Federal (STF), não
descansam em seu propósito de reescrever a história do Brasil. Na
segunda-feira, o ministro Gilmar Mendes anulou todas as condenações do
veteraníssimo petista José Dirceu no âmbito da Operação Lava Jato. Segundo ele,
os efeitos da decisão que considerou o então juiz Sérgio Moro suspeito em
processos que envolvem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se estendem a
Dirceu.
Dirceu, talvez a face mais notória da era de
corrupção lulopetista que começou no mensalão e terminou no petrolão, estrelou
os dois escândalos. No mensalão, pegou 10 anos de prisão; no petrolão, foi
condenado a 23 anos de prisão, em condenações confirmadas por duas instâncias,
que reconheceram as robustas provas documentais dos crimes. Tudo isso foi
desconsiderado pela canetada revisionista de Gilmar Mendes.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) se
manifestou contra o pedido de extensão das decisões que beneficiaram o
presidente Lula: “Decerto que não se repete decisão para casos que não sejam
iguais. Quando os pedidos são diferentes, não cabe repetir ou estender a
decisão anterior”, diz o parecer da PGR. “As partes e os fundamentos fáticos
são visivelmente distintos quando se contrasta a petição que deu origem ao
Habeas Corpus n. 164.493 (que beneficiou Lula) com o pedido de extensão em
exame”. Para usar a linguagem popular, cada caso é um caso. Como enfatizou a
PGR, o próprio STF já decidira sobre a impossibilidade de extensão de benefício
em habeas corpus distintos.
Mas nada disso importa. Os ministros
responsáveis por casos relativos à Lava Jato firmaram a tese, baseada em provas
obtidas por meios ilegais, de que tudo o que diz respeito à Operação, inclusive
as evidências materiais dos crimes, está irremediavelmente contaminado. Nas
palavras superlativas de Toffoli, tudo não passou de “uma armação fruto de um
projeto de poder”, “o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às
instituições”.
Esse “tudo” não é pouca coisa. As confissões,
delações e provas, os ativos bilionários recuperados em contas no exterior, as
investigações conduzidas por promotores estrangeiros sem qualquer relação com a
política nacional, todas as evidências reconhecidas em todas as instâncias
judiciais do maior esquema de corrupção de quem se notícia no Brasil, tudo isso
não seria mais que um delírio coletivo vivido pela população brasileira,
orquestrado por Moro e a força-tarefa da Lava Jato.
O STF, que por anos validou a Operação, agora
se empenha em fazer terra arrasada de seus resultados. Uma a uma são anuladas
provas de acordos de leniência, multas e condenações. Até criminosos confessos
são inocentados sob o argumento estapafúrdio de que teriam sofrido coação –
“tortura psicológica” no “pau de arara do século 21″, segundo Toffoli. Quando o
ministro André Mendonça, colega de Toffoli e Mendes, perguntou a 12 empresas
com acordos de leniência se tinham sido vítimas de coação, nenhuma bancou a tese.
Para piorar, as consequências desse suposto constrangimento ilegal são
seletivas: os ônus dos acordos de leniência são sustados, mas os bônus – entre
eles o de não sofrer persecução penal – são mantidos. A tese do “conluio”
contra “guerreiros do povo brasileiro” como Dirceu e seus amigos empreiteiros é
tão abstrata que atinge até processos que nada têm a ver com 13.ª Vara Federal
de Curitiba, como os acordos de leniência firmados entre a J&F e o
Ministério Público Federal.
Não se corrige um erro como outro. A pretexto
de reparar os excessos punitivistas da Lava Jato, a orgia garantista do STF
está promovendo a impunidade e desmoralizando a Corte. O silêncio de meses do
colegiado sobre essas decisões monocráticas só agrava a situação.
Certa vez, num dos muitos convescotes
promovidos por lobistas mundo afora, uma mulher perguntou a Gilmar Mendes se “o
crime no Brasil compensa”. Visivelmente constrangido, o ministro respondeu:
“Não sei”. A resposta que está sendo exarada pela Corte agora é bem mais
assertiva.
Votar é um direito, não um dever
O Estado de S. Paulo
Fim do voto obrigatório só faria bem à
democracia. Tanto mais forte ela será quanto mais depender da palavra de
convencimento dos eleitores, não de uma lei anacrônica e paternalista
A abstenção na cidade de São Paulo neste
segundo turno da eleição municipal foi de 31,54%, um recorde sob a vigência da
Constituição de 1988. Isso corresponde a 2,94 milhões de eleitores, número que
supera com folga os 2,3 milhões de votos dados pelos paulistanos ao candidato
derrotado na rodada final do pleito, Guilherme Boulos (PSOL). Em nível
nacional, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 29,26% dos cerca
de 34 milhões de brasileiros aptos a votar no domingo passado deixaram de
comparecer às seções eleitorais.
Como se vê, são números bastante expressivos,
mas nada surpreendentes. A bem da verdade, nos últimos anos, a abstenção no
Brasil oscilou muito próxima desse patamar de um terço do eleitorado. Em
democracias consolidadas, como nos Estados Unidos e em muitos países da Europa,
os porcentuais de eleitores que deixam de exercer seu direito ao voto costumam
ser até maiores, tendo em vista que se trata de países em que o voto não é
obrigatório como aqui. Logo, não se pode falar em “falhas” do sistema representativo
nem da democracia, que, como se sabe, não se limita ao ato de votar.
Na realidade, trata-se de uma constatação bem
mais singela: se é de uma democracia liberal que estamos falando, então é
perfeitamente natural que alguns eleitores, de livre e espontânea vontade,
decidam abster-se de votar pelas razões que julgarem convenientes.
Subjaz à obrigatoriedade do voto no Brasil a
presunção de que a maioria dos eleitores, se pudesse, não sairia de casa para
votar. Logo, é preciso fazê-lo ir às urnas, em nome da preservação da
democracia. De fato, a democracia precisa ser diariamente preservada, mas um
bom meio de fazer isso é acreditar na capacidade dos cidadãos de tomar decisões
racionais. No Brasil, contudo, a sociedade é vista como hipossuficiente, razão
pela qual não só o voto é obrigatório, como a Justiça Eleitoral com frequência escolhe
até mesmo o que o eleitor pode ler, ver e ouvir numa campanha eleitoral.
Ora, é preciso olhar para os números de
abstenção em São Paulo e no País com mais maturidade, não com choque, apreensão
nem muito menos preconceitos. Em muitos casos, a abstenção é uma manifestação
política tão legítima e democrática quanto sufragar um voto na urna. Nesse
sentido, como apontaram diversas pesquisas de opinião, não foram poucos os
paulistanos que não se sentiram inspirados – e, portanto, motivados a votar –
pelas candidaturas do prefeito Ricardo Nunes (MDB) e de seu adversário.
Ademais, não se pode perder de vista outros
dois fatores que podem ter contribuído para esse registro recorde de abstenção
– que, provavelmente, indica uma tendência. O primeiro, mais óbvio, é a extrema
facilidade que os eleitores têm para justificar sua ausência ou para quitar sua
obrigação eleitoral em dinheiro, por meio de uma multa de valor irrisório. O
voto é obrigatório no Brasil apenas do ponto de vista formal. O segundo é o
envelhecimento da população brasileira, o que fará aumentar cada vez mais o número
de cidadãos que, embora sejam aptos a votar, não são mais obrigados por lei a
fazê-lo.
É lícito inferir que o desencanto com as
candidaturas apresentadas tenha sido, de fato, o maior fator motivador para
esse registro recorde de abstenções. Apenas na capital paulista, somando a
abstenção aos votos brancos e nulos, nada menos que 42% dos eleitores não
votaram nem em Nunes nem em Boulos no segundo turno. Mas, a rigor, isso não tem
a menor importância para a saúde da democracia no País. Obviamente, é mais que
desejável que os partidos políticos se aproximem mais dos cidadãos e de suas
angústias e anseios. Mas sempre haverá os que optarão por manifestar sua
vontade política por meio do silêncio. E não se pode recriminar os que assim se
manifestam.
Passa da hora de a sociedade, por meio de
seus representantes no Congresso, debater seriamente sobre o fim do voto
obrigatório no País. Ao invés de causar danos à democracia representativa, o
voto facultativo obrigaria partidos e candidatos a se aproximarem dos eleitores
a fim de motivá-los a sair de casa no dia da eleição. A democracia será tanto
mais vibrante quanto menos depender de uma obrigação legal paternalista e mais
da palavra de convencimento.
USP contra o antissemitismo
O Estado de S. Paulo
Investigação conduzida pela principal
universidade do País é legítima e exemplar
A Universidade de São Paulo (USP) está
movendo processo disciplinar que pode resultar na expulsão de cinco alunos por
prática de antissemitismo. As diligências, que correm em sigilo e asseguram
espaço de defesa aos investigados, devem ser concluídas em breve. É salutar que
a principal universidade do País esteja conduzindo investigações sobre
comportamentos potencialmente inexcusáveis, que nada têm a ver com a prática de
livre circulação de ideias que suspostamente caracteriza o ambiente
universitário. Manifestar-se favoravelmente aos palestinos ou de quem quer que
seja é um direito em democracias como o Brasil, direito esse que não se
confunde com intolerância religiosa ou étnica contra ninguém.
Desde a série de ataques promovida pelo grupo
terrorista Hamas em 7 de outubro do ano passado, arrastando Israel para uma
guerra sangrenta e sem paralelo nos últimos anos, protestos em prol dos
palestinos eclodiram em universidades de todo o mundo. Não raro, alguns
participantes de manifestações em geral legítimas em defesa dos palestinos,
vítimas do próprio Hamas que supostamente os representa, cruzaram a linha e
descambaram para manifestações preconceituosas contra os judeus. Nos Estados
Unidos, três reitores da renomada Universidade Columbia foram removidos de seus
postos por “mensagens de texto bastante problemáticas” que flertavam com
“narrativas antissemitas”.
O processo em curso na USP avalia a conduta
de estudantes que em texto compartilhado classificaram de “histórica” a
barbárie perpetrada pelo Hamas no sul de Israel em outubro passado. Os
terroristas torturaram, estupraram, sequestraram e mataram centenas de
inocentes israelenses, provocando o revide de Israel e a morte de milhares de
palestinos. Dos cinco estudantes investigados, dois são acusados de escrever o
informe elogioso ao Hamas, enquanto outros três são suspeitos de disseminar
mensagens antissemitas nas redes sociais.
A defesa dos acusados afirma que a
universidade está perseguindo o livre debate de ideias. Fato é que o próprio
Centro Acadêmico Favo 22, que realizou assembleia na qual o manifesto louvando
os terroristas foi divulgado, pediu desculpas à época, afirmando não ter
relação com o “informe”. Também é fato que diferentes campi da USP têm sido
palco de antissemitismo explícito. Na Faculdade de Direito, por exemplo,
inscrições nazistas foram identificadas em elevadores, mesas e cadeiras.
Ante o recrudescimento do antissemitismo no
ambiente universitário, a atitude da USP de investigar a conduta dos alunos não
é apenas legítima, mas exemplar. Ninguém foi condenado sumariamente e as
expulsões só ocorrerão se as práticas antissemitas forem comprovadas. Em outros
lugares do mundo, usar o sofrimento palestino para promover intolerância
religiosa tem custado caro aos preconceituosos. As doações para a Universidade
Harvard caíram 15% neste ano na esteira de protestos universitários antissemitas.
Assim, perder a vaga na principal universidade do País é justo para quem,
comprovadamente, promove intolerância.
Violência no futebol requer saída técnica
Correio Braziliense
Proibir adereços e materiais que identificam
determinada organizada, jogos com portões fechados e multas monetárias são como
enxugar gelo ou balançar as redes em impedimento
No último domingo, o Brasil assistiu a mais
um caso de violência com
integrantes de torcidas organizadas como protagonistas. O ataque
feito pela Mancha Verde, ligada ao Palmeiras, deixou um membro da Máfia Azul,
entidade relacionada ao Cruzeiro, morto na BR-381, onde ônibus foram destruídos
e incendiados em Mairiporã, na Grande São Paulo. Outras 17 pessoas ficaram
feridas.
As cenas da emboscada logo se espalharam nas
redes sociais, principalmente em grupos de WhatsApp. Na mesma velocidade em que
os conteúdos foram compartilhados, também apareceram opiniões que repetem
chavões sobre episódios semelhantes. A cobrança é por uma punição exemplar,
enquanto torcedores rivais tentam emplacar na agremiação agressora o título de
"torcida mais desleal do país".
O roteiro é conhecido por qualquer torcedor
mais atento ao noticiário: grande parte da imprensa condena a emboscada, as
autoridades prometem uma resposta à altura e os suspeitos negam envolvimento no
caso. Enquanto isso, a discussão sobre as reais causas do problema continuam
ignoradas. A resposta se concentra sempre na coerção, que joga no mesmo time da
ignorância científica.
Autora do livro Futebol e violência, a
pesquisadora Heloisa Helena Baldy dos Reis se dedica ao tema. Na publicação,
que completa em breve 20 anos, ela indica possíveis linhas de combate ao
problema nascido nos anos de 1980, evidenciando-o como uma questão social não
só do esporte, mas também dele.
A autora ressalta que o futebol é usado como
plataforma para a manifestação violenta. Em um contexto social no qual boa
parte das pessoas convive com saúde e educação vulneráveis, desemprego e falta
de progresso, é comum o uso do esporte para reafirmação de comportamentos
descontrolados, sobretudo entre os homens.
Cotidianamente colocados em posições de
provedores da família, eles, diante das dificuldades socioeconômicas, recorrem
ao reforço da masculinidade para se estabelecer socialmente. A arquibancada se
torna um espaço onde podem se sentir no controle, sem as limitações que o
cotidiano lhe impõe. Campo e bola viram, então, palcos do machismo sem
questionamento coletivo.
É evidente que as soluções para um problema
dessas proporções são também complexas, embasadas em conhecimentos técnicos. O
que se cobra aqui é uma reflexão mais aprofundada sobre a violência no Brasil.
Urge pensar a questão com a profundidade que ela merece, sem vícios e
lugar-comum. As punições conhecidas pelo torcedor pouco surtiram efeito
ao longo dos anos. Proibir adereços e materiais que identificam determinada
torcida organizada, jogos com portões fechados e multas monetárias são como
enxugar gelo ou balançar as redes em impedimento.
Há, ainda, punições que têm efeitos
contrários — muitas delas pautadas no uso da força. A truculência policial
incentiva ainda mais a sede pela masculinidade, em vez de frear os crimes
cometidos pelas organizadas. Medidas sem base científica só servem para dar
respostas momentâneas à opinião pública e ignoram a complexidade que envolve a
violência em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, como o Brasil.
Aqui também cabe cobrança aos clubes. Mais do
que entender as complexidades do ganguismo, é preciso que eles banam dos seus
quadros, e do futebol, posturas que estimulem a violência. O reforço de
comportamentos violentos e da semiótica bélica dentro do esporte incendeia
ainda mais um contexto já inflamado pelo ódio a quem deveria ser apenas um
adversário esportivo.
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