Valor Econômico
Dois projetos sob análise do presidente podem ser grande retrocesso contra transparência, favorecendo supersalários e mau uso de recursos públicos
O governo levou quase uma década para
descobrir uma quadrilha que descontava pequenas quantias de milhões de
aposentados e pensionistas, lesando a população em mais de R$ 6 bilhões desde
pelo menos 2016.
Mesmo dispondo de uma estatal para gerenciar os sistemas de arrecadação e benefícios previdenciários (Dataprev) e de contar com milhares de auditores fiscais (que atuam na Receita Federal e no INSS), de Finanças e Controle (CGU) e ainda agentes, peritos e delegados da Polícia Federal, a fraude bilionária atravessou mandatos de pelo menos três presidentes da República (Temer, Bolsonaro e Lula) até ser desbaratada.
Não é por falta de bancos de dados ou de
servidores altamente qualificados (e bem remunerados) que se demorou tanto para
identificar que havia um padrão suspeito de autorizações para descontos na
folha de pagamentos em proveito de associações de procedência suspeita. No
Brasil as organizações criminosas se imiscuem nos partidos políticos, nomeiam
asseclas como secretários e até ministros e ainda corrompem servidores que
passam a trabalhar para elas. Dessa forma, suspeitas não são investigadas a
fundo e apurações acabam engavetadas.
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Raramente o ciclo de proteção e conivência é
rompido. No caso do INSS, ajudaram a fartura de evidências apuradas pela CGU,
as cifras elevadas e o apelo do caso para a sociedade - aparentemente, lesar
velhinhos aposentados gera uma comoção maior do que obras superfaturadas ou
desvios de emendas. Mas quantas outras ações dos órgãos de controle não vão
adiante porque envolvem membros do partido do presidente de plantão ou
apadrinhados de figurões do Congresso Nacional?
É para evitar que os poderosos obstruam a
atuação dos órgãos de fiscalização que países avançados contam com um grande
aliado no combate à corrupção: a própria sociedade. Por meio da transparência
das contas públicas, de dados abertos de sistemas de pagamentos e da divulgação
de documentos internos, a imprensa e organizações da sociedade civil são
capazes de denunciar malfeitos que, do contrário, nunca seriam averiguados.
No Brasil nós tivemos um grande avanço com a
aprovação, há 13 anos, da Lei de Acesso à Informação (LAI). A partir dela,
órgãos públicos foram obrigados a publicar uma série de dados e a responder a
pedidos de informações apresentados por cidadãos. É graças à LAI que jornais de
todo o país estampam diariamente manchetes sobre pagamentos milionários a
juízes, entidades como a Fiquem Sabendo abriram ao público os gastos dos
cartões de crédito corporativos da Presidência da República e organizações como
Transparência Brasil, Contas Abertas e Transparência Internacional denunciaram
ao STF graves irregularidades no uso de emendas parlamentares.
Duas iniciativas legislativas, porém, podem
acabar esvaziando todo o poder que a LAI propicia para lançar luz sobre a
atuação do governo. E ambas estão na mesa do presidente Lula.
A primeira é o PL nº 4015/2023, destinado a
aumentar a proteção de autoridades judiciais contra tentativas de homicídio por
criminosos. Nele foi colocado um jabuti que determina que “no tratamento de
dados pessoais de membros do Poder Judiciário ou do Ministério Público e de
oficiais de Justiça, sempre será levado em consideração o risco inerente ao
desempenho de suas atribuições”. Além disso, qualquer acesso não autorizado a
dados estará sujeito a multa.
Em termos práticos, esses dispositivos, caso
não sejam vetados por Lula, serão usados por tribunais e órgãos do Ministério
Público de todo o país para não divulgar mais os contracheques de seus membros,
sob a alegação de proteção a magistrados, promotores e procuradores.
Como se não bastasse, Lula encasquetou com a
ideia de que precisa alterar a LAI para disciplinar melhor o dispositivo que
autoriza a imposição de sigilo de até cem anos para resguardar informações
pessoais de agentes públicos. Trata-se de uma promessa de campanha que parece
meritória, mas representa alto risco de destruir esse instrumento de
transparência sancionado por Dilma Rousseff em 2011.
A intenção é boa, mas o governo pode muito
bem regular o sigilo de informações pessoais por decreto, e não mediante um
projeto de lei. Submeter novamente a LAI à apreciação do Congresso abrirá uma
caixa de Pandora que será explorada de modo muito conveniente por políticos
interessados em esconder da sociedade a forma como tomam suas decisões e usam o
dinheiro público.
Se Lula não quiser entrar para a história
como o presidente que promoveu o maior retrocesso contra a transparência no
país, precisa vetar os trechos do PL nº 4015/2023 que abrem a brecha para o
Judiciário e o MP esconderem seus supersalários e não dar de bandeja a LAI para
que deputados e senadores a deturpem em proveito próprio.
Antes de terminar, um disclaimer: apesar de
membro do conselho consultivo da Fiquem Sabendo, organização sem fins
lucrativos especializada no acesso a informações públicas, esta coluna reflete
exclusivamente minhas opiniões pessoais, decorrentes da minha experiência como
usuário frequente da LAI.
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