COP30 exige esforço maior no combate a emissões de gases
O Globo
Apenas 19 de 197 países que integram convenção da ONU apresentaram novas metas previstas pelo acordo
No ano em que o Brasil sediará a COP30,
conferência da ONU sobre o clima, em Belém, o mundo enfrenta dificuldades
crescentes para cumprir o que foi acertado na COP21, dez anos antes, em Paris.
Aprovado por consenso e assinado formalmente em abril do ano seguinte nas
Nações Unidas, em Nova York, o Acordo de Paris estabelece que os países tomarão
medidas para que, neste século, a temperatura global não suba além de 2°C, ou
desejavelmente 1,5°C, ante os níveis da era pré-industrial. O ano passado já
foi 1,5°C mais quente, e ainda faltam sete décadas e meia para acabar o século.
Um ano isolado não define tendência, mas 2024 já é resultado da incapacidade de os países cumprirem o prometido em Paris. Cada um deles define de modo voluntário as próprias metas para corte de emissões de gases de efeito estufa, conhecidas pela sigla em inglês NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas). Apesar de todo o esforço diplomático, nos últimos cinco anos as emissões aumentaram o equivalente a 1 bilhão de toneladas de CO₂ (dióxido de carbono) — de 52,8 bilhões para 53,8 bilhões por ano. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) calcula que, assim, o planeta chegará a 2100 com temperatura 3,1°C acima dos níveis da fase pré-Revolução Industrial. Se o mundo já enfrenta eventos climáticos extremos mais intensos e frequentes, daqui para a frente poderá ser pior.
As metas não têm sido suficientes para conter
o avanço dos termômetros. Na condição de sede da COP30, o Brasil se comprometeu
a cortar de 59% a 67% suas emissões, em relação ao ano-base de 2005, uma meta
ousada para estimular os demais países a seguir o mesmo caminho. O Reino Unido
seguiu a linha brasileira e se comprometeu a cortar 81% das emissões em
comparação às de 1990. Mas, até agora, poucos países atualizaram suas NDCs — só
19 de 197 que integram a convenção da ONU sobre o clima (a União Europeia é contada
como um país).
Turbulências que ocorrem no mundo, como a
guerra na Ucrânia ou a disputa tarifária deflagrada por Donald Trump, estreitam
o espaço para negociações multilaterais, diz a analista ambiental Natalie
Unterstell, do Instituto Talanoa. Os embates dificultam o entendimento em torno
de problemas comuns, como a crise do clima. Trump já retirara os Estados Unidos
do Acordo de Paris no primeiro mandato e fez o mesmo ao voltar à Casa Branca.
É verdade que o federalismo americano permite
a um estado como a Califórnia, sob controle do Partido Democrata, adotar normas
ambientais mais rígidas. Mas é péssimo que os Estados Unidos formalmente
estejam fora das negociações. Segundo emissor de carbono, superado apenas pela
China, o país se comprometera antes de Trump a reduzir emissões em 60%, tendo
como base 2005. O Brasil espera que a China também estabeleça uma meta
ambiciosa para estimular outros países. Por certo os chineses não deixarão de
aproveitar a oportunidade de se distinguir dos Estados Unidos sob Trump.
Mesmo que todas as NDCs atuais sejam cumpridas, a temperatura global subirá de 2,6°C a 2,8°C até 2100. Por isso será preciso fazer mais. A COP30 pretende servir de oportunidade para essa cobrança. O risco é que todas as ambições sejam frustradas — e o planeta entre numa rota irreversível de degradação ambiental.
Unificação de dados proposta por Musk ameaça privacidade
O Globo
Iniciativa facilitaria gestão e
diminuiria fraudes, mas abriria porta à perseguição e à vigilância
Não bastassem o caos deflagrado na economia
com o ímpeto tarifário, os ataques às universidades e ao Judiciário e o
abandono de aliados históricos na geopolítica, o governo Donald Trump também
parece interessado em fragilizar a privacidade dos cidadãos, um patrimônio da
sociedade americana. Está nos planos de Elon Musk a
integração de diversos bancos de dados de informações pessoais, com o objetivo
de combater fraudes e desperdício. “O governo é fraudado porque os sistemas não
conversam entre si”, disse Musk.
À primeira vista, a crítica dele faz sentido.
O governo se beneficiaria do cruzamento de dados e conseguiria, por meio de
sistemas de inteligência artificial, detectar abusos com facilidade bem maior
do que se eles se mantiverem guardados em silos. Esse é justamente o princípio
que inspira diversas iniciativas de governo digital (e-gov) bem-sucedidas pelo
mundo, a começar pelo brasileiro gov.br.
Mas grupos de defesa de direitos civis temem
que a centralização de dados tão diversos quanto prontuários de saúde,
registros financeiros e tributários, renda em jogos de azar, números de cartões
de crédito, contratos trabalhistas ou processos na Justiça seja usada pelas
autoridades para punir críticos do governo ou, no caso específico de uma das
obsessões trumpistas, monitorar imigrantes.
A Receita Federal americana concordou em
prestar apoio ao Departamento de Segurança Interna nessa tarefa, despertando
uma rebelião entre funcionários de carreira. Noutra frente, a Justiça barrou o
acesso do Departamento de Eficiência Governamental (Doge), de Musk, a dados da
Previdência, embora ele tenha obtido acesso aos registros do Tesouro e do
Departamento de Educação.
“A criação de um banco de dados monstruoso e
uniforme com todas as informações sobre todos os cidadãos será um convite à
fraude e à retaliação política”, disse o deputado democrata Jamie Raskin. A
prática é, segundo ele, comum em estados autoritários como Rússia ou China.
Nos Estados
Unidos, vigora um pacto implícito, segundo o qual quem compartilha
dados confia que serão usados apenas para certos fins restritos.
Na maior parte das democracias, vigoram leis
para disciplinar o uso de dados pessoais (no Brasil o gov.br também é regido
pela Lei Geral de Proteção de Dados). Mas, nos Estados Unidos, não há definição
legislativa recente sobre o que empresas ou governos podem fazer com os dados
que coletam. A Lei da Privacidade em vigor é anterior à explosão de dados
propiciada pela digitalização — foi aprovada em 1974 na esteira do escândalo
Watergate. No espírito, ela protege a privacidade em detrimento da eficiência.
Agora, Trump e Musk querem inverter a ordem de prioridade. Os embates deverão
prosseguir na Justiça até que as mais altas instâncias decidam se eles poderão
implementar sua própria versão do Big Brother.
Escândalo mostra descaso com
governança da Previdência
Valor Econômico
A
apropriação indébita do dinheiro dos aposentados traz um rombo adicional em
contas públicas que não conseguem fechar no azul
O maior gasto da União, o da Previdência Social, que deve ultrapassar R$ 1 trilhão este ano - ou 49,4% do orçamento federal -, não tem controles adequados. A fraude com autorizações fictícias de aposentados e pensionistas para descontos em suas contas no INSS, apropriados indevidamente por associações oportunistas ou de fachada, é a mais recente prova da vulnerabilidade da Previdência e de quem dela depende a ataques de salteadores. O atual episódio, que pode ter lesado os aposentados em R$ 6,3 bilhões em uma conta aproximada até 2024, e incompleta, pois não contabiliza o primeiro trimestre de 2025, tem peculiaridades perturbadoras: a falta de vigilância atravessa governos sem que a governança seja aprimorada.
Ao contrário de escândalos que surgem de repente, aparentemente do nada, a
fraude com os descontos dos aposentados foi alvo de investigações prévias da
Corregedoria-Geral da União (CGU) em 2023, do Tribunal de Contas da União (TCU)
e de denúncias anteriores, com resultados claros e comprometedores. Na amostra
da CGU, 97% dos 1273 aposentados não haviam autorizado os descontos em seus
benefícios. A apuração do órgão mostra que em 72% dos casos as entidades que
receberam o dinheiro dos descontos não entregaram ao INSS a documentação
necessária para fazê-lo.
Também de forma pouco usual, o INSS foi avisado previamente que
irregularidades ocorriam em escala crescente, sem que qualquer providência
digna de nota tenha sido tomada para interrompê-las. Foi necessária uma
operação da Polícia Federal em 13 Estados e Distrito Federal, com 211 buscas em
13 entidades para pôr fim aos desvios. O presidente Lula demitiu o presidente
do INSS, Alessandro Stefanutto.
Desta
vez, não foram os aliados de fora da coalizão de esquerda petista, como o União
Brasil, que indicou o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, para um cargo
ao qual assumiu já sob denúncias de desvio de emendas parlamentares para
proveito próprio, que trouxe novos dissabores a um governo acuado pela queda de
popularidade. Carlos Lupi, ministro da Previdência, indicou Stefanutto para o
posto, depois que seu antecessor na chefia do INSS, Glauco Warburg, também
apadrinhado pelo cacique do PDT, foi exonerado na “farra das passagens”, uso de
dinheiro do INSS para custear viagens com fins particulares.
Lupi
não só fez péssimas indicações, como incorreu na temeridade agora de
defendê-las após evidências suficientes de malfeitos. Qualificou Stefanutto de
funcionário “exemplar”, que “não deveria ser jogado na fogueira”. Fez mais,
declarou ao Jornal Nacional que sabia dos indícios de irregularidades para as
quais o INSS fora alertado. “Tomamos as atitudes possíveis. O governo tem suas
demoras”, disse.
Aliado de longa data de Lula, Lupi, ministro do Trabalho em seu segundo
governo, e do primeiro de Dilma Rousseff, foi demitido em 2011 por operações
suspeitas com ONGs. A ligação de Lupi com o associativismo e sindicatos vem do
relacionamento com correntes que se opunham ao ativismo da CUT petista e,
antes, à Lula no Sindicato do ABC, quando ele pregava o fim do peleguismo. Em
nome de alianças equívocas, Lula entregou o Ministério do Trabalho em 2007 a
Carlos Lupi, representante de antigos opositores do PT, entre eles, a Força
Sindical.
A conta
da espoliação dos aposentados por entidades de ocasião não pode ser atribuída
apenas ao governo do PT. Denúncias sobre falsas autorizações foram feitas em
2016, mas foi a partir de 2019, no governo Bolsonaro, que os descontos com
falsos consentimentos começaram a crescer, para deslanchar de vez no governo
Lula. A MP 871, de janeiro de 2019, primeiro mês de Bolsonaro como presidente,
fixou prazo de 2 anos para a reconfirmação dos descontos pelos aposentados. O
Congresso subiu o prazo para 3 anos. Na lei do microcrédito digital, a 14.438,
de 24 de agosto de 2022, a exigência de revalidação foi revogada. A partir daí,
as falsificações encontraram campo aberto para prosperar, sem qualquer
obstáculo. O governo Bolsonaro foi um dos responsáveis por isto, no que foi
sucedido pelo absoluto descaso e inação do governo Lula.
A
apropriação indébita do dinheiro dos aposentados traz um rombo adicional em
contas públicas que não conseguem fechar no azul. A CGU prometeu que todos
receberão o dinheiro de volta. O escândalo legou pelo menos dois problemas ao
Planalto. O econômico, que pode atingir entre R$ 6,3 bilhões e R$ 8 bilhões,
obrigará a mais uma ginástica difícil em um orçamento cada vez mais apertado. O
político envolve decidir o destino de Lupi, sob cuja gestão as filas de pedidos
de aposentadoria voltaram para perto do recorde. É um peão que nunca esteve na
cogitação da reforma ministerial de Lula, que parece seguir ao sabor de
desventuras, como a desistência do deputado Pedro Lucas de assumir o Ministério
das Comunicações, ou agora, do velho estigma da corrupção que persegue os
governos petistas desde o mensalão.
Se esses problemas podem não ter fácil solução, o da governança da Previdência
tem: a nomeação de técnicos competentes, com boa reputação e bons antecedentes.
Não é difícil encontrá-los.
Folha de S. Paulo
Auditoria do TCU revela programas financiados
sem transparência necessária, mascarando a fragilidade do Tesouro Nacional
Premido por restrições orçamentárias, o
governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) busca manter
sua política irresponsável de expansão de gastos por meio de mecanismos
heterodoxos, repetindo o padrão de administrações petistas anteriores.
O alerta quanto aos riscos dessa conduta
aparece em
auditoria recente do Tribunal de Contas da União (TCU). Embora ainda
em fase de instrução, o trabalho identificou ao menos quatro fontes de receitas
que não são recolhidas à conta do Tesouro Nacional, além do uso de recursos de
natureza financeira para custear despesas correntes.
Quanto às entradas não contabilizadas no
Orçamento, um caso é o das verbas oriundas da comercialização de petróleo que
seriam direcionados ao Auxílio-Gás, promessa populista de Lula.
Do lado das despesas, aparece a mobilização de fundos privados, nos quais a
União é cotista e que não transitam pela conta do Tesouro, mas são utilizados
em programas de natureza pública.
Neste rol entra o uso de recursos de dois
fundos para financiar
os gastos do programa Pé-de-Meia, de combate à evasão escolar. O tribunal
já determinara, em fevereiro, que cerca de R$ 6 bilhões fossem incluídos no
Orçamento em até 120 dias.
Também foi citado o problema do emprego sem
trânsito pelo Orçamento de até R$ 29,75 bilhões do fundo Rio Doce, criado para
compensar os afetados pelo rompimento da barragem da Vale em Minas
Gerais. Mesmo que em tese direcionadas a ações de natureza pública, o risco de
menor controle das verbas é óbvio.
Por fim, há os casos do uso de fundos
públicos para alavancar políticas de concessão de crédito por meio de bancos
oficiais. A ampliação do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida (MCMV)
que visa financiar imóveis de até R$ 500 mil contará com recursos de até R$ 15
bilhões do Fundo Social do Pré-Sal.
Todas são formas de burlar até mesmo os
limites frouxos do chamado arcabouço fiscal petista. Cria-se um orçamento
paralelo, que encobre a situação deficitária das contas públicas.
Mesmo com os alertas, o
Planalto insiste e tenta criar um novo fundo privado, de R$ 6,5 bilhões,
para infraestrutura e
recuperação de eventos climáticos, com verbas antes voltadas à mitigação dos
impactos das enchentes no Rio Grande do Sul.
Não surpreende que seja assim, já que o
próprio governo admitiu candidamente nas diretrizes orçamentárias de 2026,
enviadas ao Congresso
Nacional neste mês, que as normas fiscais em vigor não se sustentarão
a partir de 2027.
Depois da farra dos últimos dois anos, o que
se busca, à expensa do contribuinte, é adiar o necessário ajuste. O custo já
chegou, porém. A expansão de gastos além dos limites, mesmo obscurecida nos
dados oficiais, pressiona inflação e juros, acelera a
escalada da dívida pública, eleva a percepção de risco e compromete os
investimentos necessários para o crescimento econômico.
Índia e Paquistão, fronteira tensa
Folha de S. Paulo
Após ataque, Nova Déli suspende tratado e
Islamabad ameaça usar armas; mundo já abalado por guerras exige diplomacia
A relação historicamente conturbada
entre Índia e Paquistão tensionou-se
de modo temerário desde terça (22), quando um
ataque terrorista matou 26 indianos na Caxemira. A gestão do
primeiro-ministro Narendra Modi responsabilizou
o país vizinho e valeu-se das águas compartilhadas da bacia do rio Indo como
arma retaliatória.
À primeira vista, é boa notícia que a Índia
não tenha utilizado seu poderio militar, que inclui armas atômicas, contra o
também nuclearmente armado Paquistão.
Entretanto, ao anunciar a suspensão do
Tratado de Águas do Indo, intermediado pelo Banco Mundial em 1960, Modi mirou
num alvo capaz de devastar a agricultura,
fonte de 24% do PIB do Paquistão, e de desestabilizar a geração de energia
hidrelétrica.
O governo paquistanês avisou que
"qualquer ato para interromper ou desviar o fluxo de água para o Paquistão
será considerado um ato de guerra e respondido com total força por todo
espectro do poder nacional".
A crise expõe o precário diálogo diplomático
entre as duas nações que, até o momento, pareciam ter se conciliado só no campo
da regulação do fluxo do rio Indo. Ambas travaram quatro guerras entre si —três
delas em torno do domínio da Caxemira— e quase iniciaram a quinta em 2019.
É certo também que a difusão de grupos
terroristas no Paquistão, sobretudo os orientados à tomada de parcelas da
Caxemira sob a bandeira indiana, tem agravado a débil convivência. Há anos, a
Índia acusa Islamabad de conivência com tais células.
Nova Déli anunciou
retaliações antes da confirmação da autoria do massacre. Apenas na quinta (24),
segundo o jornal Hindustan Times, a inteligência indiana divulgou os nomes de
cinco suspeitos —três paquistaneses e dois residentes naquele país.
O governo indiano ordenou
a expulsão dos paquistaneses de seu território. Islamabad determinou a
retirada de parte dos diplomatas e adidos militares da Índia. As trocas e
acordos comerciais estão suspensos, e o espaço aéreo do Paquistão fechou-se a
companhias indianas.
A comunidade internacional começa a
mobilizar-se para evitar um conflito armado no sul da Ásia entre
potências nucleares rivais e vizinhas da China. Espera-se
que a resposta veemente do premiê Modi não passe de instrumento de pressão para
que o Paquistão assuma o compromisso de combater o terrorismo.
Num cenário global já inflamado por guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza, será calamitoso se as duas nações asiáticas não apostarem na diplomacia.
A reforma do Código Civil é desastrosa
O Estado de S. Paulo
A título de modernizar a legislação, o
projeto ora em tramitação não é apenas falho, mas prejudicial ao País. Aumenta
a insegurança jurídica, a litigiosidade, o arbítrio e o custo Brasil
Tramita no Senado o projeto de lei de reforma
do Código Civil (CC) – o PL 4/2025 – que, sob o pretexto de modernizar a
legislação civil e adaptá-la à realidade do século 21, é um completo retrocesso
civil e democrático. De autoria de uma comissão de juristas e apresentada pelo
senador Rodrigo Pacheco, a proposta é extensa. Prevê a alteração de 1.197
artigos do CC, o que representa mais mudanças do que aquelas realizadas entre o
CC de 1916 e o de 2002. No entanto, mais extensos e profundos são também seus
problemas de forma e de conteúdo.
Chama a atenção no PL 4/2025, em primeiro
lugar, o excesso de linguagem indeterminada, transferindo na prática o poder de
legislar – isto é, de determinar o conteúdo das normas jurídicas – aos juízes.
A má redação dos artigos não é mera falha técnica, o que já seria inescusável
em uma alteração da lei fundamental das relações privadas, mas produz um
verdadeiro déficit democrático. Se a proposta em tramitação for aprovada, os
critérios decisórios do marco jurídico civil, que em tese deveriam ser estabelecidos
pelo Legislativo – pois esse é o modo de funcionamento de um regime democrático
–, passarão a ser arbitrados por cada intérprete da lei, o que fere a própria
ideia de Estado Democrático de Direito.
Como este jornal sempre defendeu, a República
é um regime de leis. E o mesmo se deve dizer da democracia: o regime
democrático é uma democracia de direito. Não existe democracia do arbítrio, ou
no arbítrio. Por isso, o Direito não pode se dar ao luxo de ser inseguro,
destituído de critérios previamente cognoscíveis que orientem a aplicação de
suas regras. Os cidadãos devem saber o que esperar das normas legais. Sem
regras aplicáveis segundo critérios anteriormente estabelecidos, não há
democracia. Há o arbítrio da subjetividade – e isso é o que, infelizmente, faz
o PL 4/2025, ao multiplicar os conceitos indeterminados.
O texto diz, por exemplo, que “a cláusula
contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito”.
Ora, tal previsão significa instaurar, de forma solene e intencional, um novo
ciclo de incertezas e de litígios, do que com toda a certeza o País não
necessita agora.
Segundo levantamento do professor Paulo Doron
de Araujo, o PL 4/2025 aumenta em 450% as referências à função social do
contrato e da propriedade. Trata-se de um sintoma, entre tantos outros, de um
perverso e disfuncional populismo jurídico. Promete-se proteger os setores
vulneráveis da população e combater as “elites” e as empresas, sendo que o
resultado é a difusão sistêmica de velhos e novos danos: aumento da insegurança
jurídica, da litigiosidade, do arbítrio e do custo Brasil.
Outro grave problema do PL 4/2025 é a
confusão entre o CC e o direito do consumidor. A ter em conta alguns
dispositivos da proposta, parece que o País não dispõe de um Código de Defesa
do Consumidor e de que seria preciso incluir normas próprias desse regime no
CC, em uma nova ampliação de hipóteses de intervenção judicial dos contratos,
gerando, consequentemente, mais insegurança.
O campo da responsabilidade civil é outra
seara na qual o PL 4/2025 expressa seu furor populista e retrógrado. Em vez de
reparar o dano ilícito – como sempre foi –, o dever de indenizar ganhará novas
funções, como punir, prevenir, educar e socializar o risco. São mais de 100
novas regras sobre o tema, alterando os atuais 28 artigos.
Não há como salvar esse projeto de reforma do
CC. Ele não é apenas falho, mas prejudicial ao País. Não vem construir a partir
do que já se tem, mas destruir o que foi arduamente estabelecido e que ainda
está em processo de estabilização. Diante das severas críticas recebidas, a
comissão autora da proposta tem dito que a maior parte das mudanças baseia-se
na jurisprudência. Talvez aqui esteja o principal problema. Não entenderam a
função da lei numa democracia. Em vez de ser a lei a prover critério seguro à sociedade
e ao Judiciário, querem escrevê-la a partir de uma miríade de decisões
contraditórias. Não é de estranhar que o texto tenha ficado do jeito que está.
Política a distância
O Estado de S. Paulo
Levantamento mostra que Lula recebe menos
parlamentares que Dilma, Temer e Bolsonaro. O isolamento político é um luxo ao
qual um presidente cada vez menos popular não se poderia dar
O presidente Lula da Silva se reúne bem menos
com deputados e senadores do que seus antecessores Jair Bolsonaro, Michel Temer
e Dilma Rousseff, informou o Estadão com base num levantamento da
organização não governamental Fiquem Sabendo, que comparou a agenda pública dos
primeiros 28 meses do atual mandato com os demais. O número de compromissos do
petista com o Congresso no período não chega a 20% do patamar alcançado por
Temer, um hábil articulador, e Bolsonaro, um inquestionável oportunista, e fica
aquém até mesmo de Dilma, que teve apenas 17 meses de segundo mandato devido ao
impeachment e era reconhecida pela ausência de atributos políticos e pela
rarefeita capacidade de articulação com o Legislativo.
Em outros tempos, o modesto volume de
encontros do presidente com deputados e senadores poderia até ser visto como
sinal de virtude, como que a escapar do antes inevitável envolvimento direto na
cobrança da fidelidade parlamentar e na operação do conhecido “toma lá, dá cá”
– o método histórico com o qual governos liberavam emendas de aliados e
parlamentares condicionavam o apoio e o voto a essa liberação. Hoje, porém,
observados tanto a agenda do presidente quanto o desempenho político do governo
lulopetista, o distanciamento de Lula da Silva é uma evidência da malaise do
atual mandato: um presidente mais autocentrado do que nunca, com nenhuma
paciência para as rotinas do governo e com pouca disposição para receber
parlamentares e negociar com eles. Lula não só se encontrou muito menos – foram
apenas 96 compromissos presenciais, contra 502 de Bolsonaro e 498 de Temer –,
como quase todos os encontros tiveram a presença de deputados e senadores do
próprio PT.
É preciso reconhecer que Lula enfrenta hoje
um ambiente bem distinto do que lidava em seus dois primeiros mandatos: o poder
do Executivo sobre a agenda legislativa não faz sombra ao que havia no passado.
O costumeiro trator governista no Congresso começou a ruir em 2015, quando
iniciou a escalada, em valores e impositividade, das emendas parlamentares.
Como este jornal mostrou há poucos dias, hoje as emendas parlamentares superam
a soma dos recursos livres para investimentos de 30 dos 39 ministérios, o que fortalece
o Congresso, esvazia o poder das pastas como moeda de troca política e altera a
dinâmica das relações entre os dois Poderes.
A esse problema soma-se outro: a majoritária
presença dos partidos de centro-direita e direita na Câmara e no Senado. Com a
esquerda sem fôlego eleitoral, Lula precisou distribuir nove ministérios a
partidos como União Brasil, PSD, MDB, PP e Republicanos, mas na prática governa
como uma coalizão tradicional da esquerda, com PT e seus satélites. Além disso,
as legendas centristas têm número considerável de oposicionistas, tornando a
maioria governista instável e, por vezes, hostil. Disso resultou um conjunto
considerável de derrotas em 2023 e 2024: a despeito de alguns feitos, como a
aprovação da reforma tributária, o governo tem desempenho pior que os
antecessores quando avaliadas as votações das medidas provisórias – principal
ferramenta legislativa do Executivo – e dos vetos presidenciais.
Todos esses fatores, somados, deveriam
provocar mais, e não menos, disposição presidencial em dialogar e ceder
espaços. Como se sabe, a indisposição de Lula se soma à histórica incapacidade
petista de dividir o poder com aliados: o PT domina quase metade dos
ministérios, embora, por exemplo, tenha apenas 13% das cadeiras da Câmara dos
Deputados, além de concentrar as pastas cujos ministros dão expediente no
Palácio do Planalto, como a Casa Civil, a Secretaria de Relações Institucionais
e a Secretaria-Geral da Presidência.
Tanto líderes partidários ouvidos pelo Estadão quanto
o próprio governo sugerem que Lula deve fazer menos política a distância e
passar a receber deputados e senadores com mais frequência, graças a um suposto
“ajuste de ponteiros” entre ele e os presidentes da Câmara, Hugo Motta
(Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Resta saber
a que uso se prestará tal ajuste e, sobretudo, se o governo terá, nos meses que
restam deste mandato, algo que faltou até aqui: uma agenda para o País.
Uma cassação pitoresca
O Estado de S. Paulo
Réu por assassinato, Brazão é cassado pela
Câmara, mas mantém direitos políticos
Dez meses depois de ser declarado réu em ação
penal que apura o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e de seu
motorista, Anderson Gomes, o deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido-RJ)
teve o mandato cassado pela Mesa Diretora da Câmara – mas não como consequência
da acusação de ser o mandante do crime.
Brazão foi cassado porque, ora vejam, excedeu
o limite de ausências às sessões legislativas permitido pelo regulamento da
Casa. Ao que tudo indica, o fato de ter sido preso preventivamente pelo crime –
e, portanto, impedido de marcar presença em plenário – não pesou na decisão.
Como ninguém é bobo, não parece se tratar de
algo acidental. Na verdade, foi a solução encontrada para dar ares de punição
sem, contudo, retirar do parlamentar seus direitos políticos.
Quando um parlamentar é cassado pela Mesa
Diretora, seus direitos políticos podem ser preservados. Ou seja, ele pode, em
tese, se candidatar na eleição seguinte. Foi o que aconteceu com Brazão.
No entanto, a cassação de Brazão deveria ter
sido julgada pelo plenário da Câmara, uma vez que havia parecer do Conselho de
Ética da Câmara favorável a uma representação do PSOL que exigia a cassação do
deputado. Esse parecer foi emitido em agosto passado, sem que o caso fosse
levado à votação. Se o plenário decidisse pela cassação, Brazão perderia
imediatamente seus direitos políticos por oito anos.
A decisão da Mesa Diretora de cassar ela
mesma o parlamentar livrou os colegas de Brazão de votar pela sua
inelegibilidade ou de se expor votando pela manutenção de seu mandato num caso
de grande repercussão nacional. Agora, na prática, quem decidirá sobre os
direitos políticos de Brazão será o Supremo Tribunal Federal (STF), que julga
seu caso no processo relativo ao assassinato de Marielle Franco. A lei
determina que um político condenado com trânsito em julgado perde os direitos
políticos.
Vê-se, assim, o tamanho do imbróglio
envolvendo Chiquinho Brazão. O caso é sensível, não só por envolver o suposto
mandante do assassinato político mais rumoroso da história recente do País,
como também por servir para atiçar ainda mais a animosidade entre bolsonaristas
e o Supremo.
Em abril do ano passado, recorde-se, a Câmara
votou pela manutenção da prisão de Brazão, que havia sido determinada pelo
ministro do STF Alexandre de Moraes e que servia então de pretexto para nova
crise entre o Supremo e os bolsonaristas no Congresso. Foi uma decisão prudente
da Câmara.
Agora, sabe-se lá movida por quais interesses
e obedecendo a quais estratégias, a Mesa Diretora da Câmara resolveu jogar de
vez o destino de Brazão para o STF.
A Câmara, mais uma vez, mostra-se incapaz de simplesmente fazer o que é certo quando se trata de punir seus integrantes que desrespeitam o mandato que receberam dos eleitores. Considerando-se que poderia ser até pior, isto é, que a Câmara poderia ter determinado a soltura de Brazão mesmo diante das acusações cabeludas contra ele no caso Marielle e em franco desafio a uma ordem do Supremo, o desfecho acabou sendo o menor dos males.
Proteger o planeta é obrigação de todos
Correio Braziliense
Papado de Francisco fez o desenvolvimento
sustentável, expressão tão repetida por diversos setores, passou a fazer parte
do vocabulário oficial da Igreja
Há uma semana, o mundo reflete sobre a
importância do argentino Jorge Mario Bergoglio para a humanidade. O papa que
escolheu ser Francisco — em reverência a São Francisco de Assis, que dedicou a
vida aos pobres — deixou um amplo legado, não apenas para a Igreja Católica. Em
12 anos de pontificado, seus ensinamentos foram de economia a questões
espirituais, passando por diversos assuntos que afligem os tempos atuais. Voz
permanente contra as guerras a que assistimos, as desigualdades sociais que
aumentam e o sofrimento que cerca os imigrantes, ele também insistiu em outro
desafio dos dias de hoje: o meio ambiente.
Com seu perfil inovador, o bispo de Roma
colocou a natureza na pauta cristã, chamando para o Vaticano a responsabilidade
de orientar os fiéis a esse respeito. O desenvolvimento sustentável, expressão
tão repetida por diversos setores, passou a fazer parte do vocabulário oficial
da Igreja. Em consequência, como é comum diante das posições papais, as
incontáveis paróquias espalhadas pelos continentes começaram a tratar o meio
ambiente em encontros, homilias e, principalmente, a incentivar atitudes
ecológicas.
Inspirador pelas palavras, mas especialmente
pelas ações, o papa Francisco deu exemplos importantes nesse contexto desde sua
eleição, em 2013. De pequenos gestos — como a escolha por carros de baixo
consumo de combustível e a estreia do primeiro papamóvel elétrico — a outros
com alcance transformador, ele demonstrou sua preocupação com o planeta. Em
2015, escreveu em uma carta oficial: "Nada deste mundo nos é
indiferente". A "justificativa" para a encíclica Laudato si', na
qual a degradação ambiental e a crise climática são abordadas, estava colocada
de uma maneira capaz de tocar os corações dos católicos e de quem se dispusesse
a ouvir.
Com gentileza e sabedoria, o pontífice lançou
a missão coletiva da atualidade: cuidar da "casa comum". Além de um
convite, o texto apresenta uma crítica aos impactos ambientais e sociais
causados por um sistema econômico baseado no consumo desenfreado, no descarte
descontrolado e na exploração dos recursos naturais.
Inovador e atento, Francisco aponta a ciência
como indicativo de alternativas de recuperação e de sustentabilidade, mas
destaca a necessidade de transformação cultural que envolva os valores, a
espiritualidade e a ética dos povos.
O apelo ambiental do papa, que tanto tocou as pessoas com seu olhar humanitário, precisa ser ouvido. No Brasil, os frutos institucionais já aparecem, como a Campanha da Fraternidade 2025 com o tema "Fraternidade e Ecologia Integral". Que esse pensamento extrapole as dependências católicas e mobilize a população. Afinal, a orientação que vem de Francisco diz respeito à sobrevivência de forma digna, com cooperação global e compromisso. A natureza não pode mais ser vista como fonte para uso indiscriminado. A mudança profunda, tão disseminada pelo pontífice, precisa motivar a todos, independentemente de religião.
"Caso da Hilux": prescrição
vergonhosa
O Povo
É vexatório para o Judiciário cearense não
apenas que nenhum dos PMs acusados de metralhar um veículo com quatro turistas
em 2007 tenha sido condenado, mas que três dos policiais implicados vejam-se
agora livres da sentença por prescrição de punibilidade.
Em bom português: o tempo passou sem que a
Justiça haja efetivamente analisado os recursos interpostos pelas defesas dos
fardados, ainda em 2018. Como se trata de crime praticado quase duas décadas
atrás, houve um lapso temporal durante o qual os agentes responsáveis pela
aplicação da lei falharam.
Ao menos é isso que se evidencia em toda essa
demora num caso que se mostrou rumoroso à época, tanto pela forma atabalhoada
com que os soldados agiram, atirando a esmo em um carro com passageiros
confundidos com criminosos, quanto pela proporção da força na investida: mais
de 20 disparos sem que houvesse certeza sequer da identificação do modelo e das
pessoas em seu interior.
Naquela noite de setembro de 2007, não custa
lembrar, o casal Innocenzo Brancati e Denise Sales Campos Brancati se deslocava
pela avenida Raul Barbosa, nas proximidades do bairro Lagamar. Retornando do
Aeroporto Internacional Pinto Martins, eles estavam em companhia de Marcelino
Ruiz Campelo e Maria Del Mar Santiago Almudever, espanhóis recém-desembarcados
na capital cearense.
O patrulhamento local então cometeu erros em
série: confundiu a Hilux dos estrangeiros com um transporte usado por
indivíduos que havia pouco tinham assaltado um caixa eletrônico na periferia da
cidade. Além disso, a despeito de os condutores não oferecerem resistência ou
ameaça, puseram-se a metralhá-los. Por sorte, não houve mortes.
Os envolvidos foram indiciados por tentativa
de homicídio. Do grupo, uma parte foi sentenciada quatro anos depois, mas
apelou ao Tribunal de Justiça do Ceará (TJ-CE). Outra ala foi levada a júri
popular. Ao cabo de tantos anos, ninguém seria de fato punido, uma excrescência
sob qualquer ângulo que se avalie a história.
O prejuízo, contudo, vai além do que
naturalmente deriva dessa patente leniência em episódio que, se não redundou em
tragédia, foi por pura contingência. Afinal, o Ceará tem como um de seus
trunfos econômicos o turismo, vitrine nacional e internacionalmente bem
posicionada. No território, há grande afluxo de viajantes oriundos da Europa,
notadamente da Itália e da Espanha, países-mães das vítimas daquela malfadada
operação policial.
Que imagem, portanto, se projeta de um estado
cuja justiça se desincumbe de adotar sanção rigorosa contra os autores de uma
barbaridade semelhante, na qual se revela uma dupla falência, policial e
judicial?
Logo, a ausência de punição a quem tenha
tomado parte nessa "ação desastrosa", como classificou O POVO na
primeira página, é uma mácula que se reflete no Ceará como destino turístico,
hoje mais ainda, mesmo que se esteja falando de evento já de muito
passado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário