O Globo
Não é um partido, mas a estrutura constituída
por incontáveis agentes que, em ambiente competitivo, buscam preservar e
ampliar sua riqueza
O ouro bateu na marca recordista de US$ 3.500
a onça na segunda passada, dia 21. Na terça, 22, Trump desmentiu a si mesmo,
assegurando que não tentaria violar a lei para demitir Jerome Powell,
presidente do banco central (Fed) dos Estados Unidos,
e insinuou a hipótese de recuo na guerra tarifária com a China. Na quarta, 23,
os índices das Bolsas voltaram a subir. Seria o mercado financeiro, no fim das
contas, de esquerda?
A indagação ridícula poderia ser uma réplica lógica ao discurso de Lula e do PT, que cultivam o hábito de apontar o mercado como agente político da direita: o “inimigo do povo”, o longo tentáculo dos bancos, a mão invisível do imperialismo. A ideia, que circula há décadas, atingiu o paroxismo durante a campanha movida pelo governo contra Roberto Campos Neto e, mais amplamente, contra a independência do Banco Central.
Durante dois anos, a cada reunião do Copom,
ouvimos do Planalto a acusação de que os juros altos funcionavam como arma do
“Estado profundo” (o BC independente) para sabotar o “governo popular” e
engordar os tubarões das finanças. A gritaria cessou subitamente, porém, quando
Campos Neto cedeu lugar a Galípolo, o indicado de Lula que deu continuidade à
política monetária ortodoxa do antecessor.
Bancos centrais independentes retiram dos
governos o poder de conduzir a política monetária. Governantes populistas
tendem a desafiar os limites institucionais a seu poder. Trump foi mais longe
que Lula, declarando guerra a um presidente do Fed indicado por ele mesmo, em
2017. Seu recuo não foi imposto pelos republicanos suplicantes ou pelos
democratas impotentes, mas por uma reação singular do mercado que ameaça
destronar o dólar e, no fim da linha, destruir o “privilégio exorbitante” dos
Estados Unidos de emitir a moeda do mundo. O mercado virou à esquerda?
A pergunta faz tanto sentido quanto o meme
que circula por aí exibindo Trump como agente infiltrado de um partido
revolucionário marxista no Salão Oval. O presidente dos Estados Unidos reza no
altar do protecionismo, odeia os “globalistas”, alinha-se a Putin contra
a Ucrânia,
despreza Otan e
União Europeia, descreve CIA e Fed como órgãos vitais do tal “Estado profundo”
consagrado à opressão do “americano esquecido”. Como o século XX ensinou várias
vezes, os extremismos de direita e de esquerda compartilham uma coleção de
noções antiliberais e antidemocráticas.
O mercado não é um partido. Não é de direita
ou de esquerda, mas a estrutura constituída por incontáveis agentes econômicos
que, em ambiente competitivo, buscam preservar e ampliar sua riqueza. No
primeiro mandato de Trump, o mercado restringiu os piores impulsos
protecionistas da Casa Branca, conservando a estabilidade da maior economia do
mundo. No segundo, diante de um presidente mais radicalizado, o pavor toma
conta do mercado e, a fim de preservar o patrimônio, os agentes econômicos
ameaçam saltar ao mar, abandonando o navio do dólar.
A Conferência de Bretton Woods (1944)
estabeleceu um sistema de paridade fixa entre dólar e ouro que ancorou a
economia mundial durante três décadas. No início dos anos 1970, a paridade
sucumbiu às pressões inflacionárias. A flutuação da moeda americana, instituída
por Nixon, alçou o dólar a um trono indisputado. O “rei dólar” converteu os
títulos do Tesouro americano no refúgio inevitável das horas de crise
geopolítica ou econômica.
A segunda ascensão de Trump parecia esculpir
uma dessas crises. Há pouco, imaginava-se que, no contexto da guerra tarifária,
o dólar experimentaria um ciclo de valorização. Trump, porém, ultrapassou as
mais sombrias expectativas, produzindo uma corrida rumo ao desconhecido. A
escalada do ouro e a desvalorização da “moeda mundial” descortinam a visão de
um abismo.
O choque entre Trump e o mercado — refletido
tanto nos índices das Bolsas quanto nas cotações dos títulos do Tesouro
americano —definirá a geometria da economia mundial. Torça pelo triunfo do
mercado, mesmo se você é de esquerda. A alternativa é uma caótica tempestade
global que empurraria sociedades devastadas aos braços de ultranacionalistas e
neofascistas.
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