terça-feira, 6 de maio de 2025

O problema do centro – Pedro Doria

O Globo

Política se tornou identidade. Ser de esquerda ou de direita exige o ritual de estar na vida on-line reforçando pertencer à tribo ou às subtribos

No início da semana passada, o noticiário político foi revolvido pelos movimentos do ex-presidente Michel Temer (MDB-SP) e do governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB-RS) querendo intervir na disputa pelo Planalto em 2026. O evento agitou inúmeros grupos de zap centristas voltados para o debate de política. Não é à toa: poucos lugares são mais solitários, no Brasil de hoje, que o centro. Por aqui, consistentemente invertemos a ordem das coisas. Discute-se muito quem pode ser o candidato a representar aquela visão de país que, um dia, Fernando Henrique Cardoso representou. Como se o candidato certo bastasse para conquistar o eleitor. Não faltam políticos capazes de ocupar esse lugar. O que falta, ora, são os eleitores. E nenhuma força política trabalha para atraí-los.

A batalha política nesta década do novo século se trava em duas dimensões. A principal é identidade. Mas o que a molda é uma narrativa. E as duas passam, fundamentalmente, por um único meio de comunicação. São, evidentemente, as redes sociais.

Que história a direita bolsonarista conta? O Estado foi tomado por um grupo que não tem em vista os interesses do “verdadeiro povo”. A essa ideologia dá-se o nome de “marxismo cultural”. Eles, no Estado, não estão sozinhos. O jornalismo, a universidade e as artes foram igualmente controlados por esse grupo que quer impor uma visão única, sexualmente permissiva, corrupta e contrária à propriedade privada. A palavra-chave nessa história é “liberdade”. A elite que a tudo controla quer impor seu estilo de vida ao povo, que, religioso e conservador, tem pouca força para reagir, não fosse o grande líder. Ele luta para dar liberdade ao povo. Do outro lado, está uma “ditadura”.

A história, assim contada, é fantasiosa. Mas, de documentários da Brasil Paralelo a memes grosseiros distribuídos pelo WhatsApp, é contada, recontada e reiterada faz pelo menos dez anos. Tudo o que acontece no país é rapidamente reinterpretado através dessa lente. Dessa narrativa.

A esquerda também tem uma narrativa do tipo. Conta que a elite é de direita, controla o país desde sempre e não tolera a ideia de justiça social. Dilma sofreu não um impeachment, mas um golpe, e Lula foi preso por ter contrariado as elites. Ambos ousaram botar brasileiros pobres na ponte aérea, nas faculdades. E o país não cresce porque neoliberais rentistas são entreguistas. Querem ganhar dinheiro negociando no mercado, não produzindo. Se não temos fábricas grandes, com legiões de operários, é porque os investimentos são desviados de um projeto industrial brasileiro para a taxa de juros básicos da economia, para o “mercado” que deseja ganhar sem produzir. Inclua-se no script, claro, o identitarismo que separa os muitos oprimidos brasileiros e grupos maiores ou menores de vítimas, dependendo de cor da pele, gênero ou orientação sexual.

Para ser justo com a visão de esquerda, ela é bem mais complexa do que é possível resumir num parágrafo e reúne trabalhos sérios de muitos acadêmicos em boas universidades. Mas, na verdade, a complexidade importa pouco. O que importa é a narrativa ser descrita num parágrafo, caber num meme, em slogans, em vídeos de 90 segundos.

Tais mensagens controlam as redes sociais quando o assunto é política. Republicá-las em texto, imagem ou vídeo faz parte de um jogo de reiteração de identidade. Política se tornou identidade. Ser de esquerda ou de direita exige o ritual de estar na vida on-line reforçando pertencer à tribo ou às subtribos. Ser capaz de analisar os acontecimentos do dia pelo filtro da narrativa, recontar a notícia pontuando como ela se encaixa na visão compartilhada pela tribo é a arte diária praticada no jornalismo engajado de uma banda e da outra.

O problema do centro é que não joga esse jogo. Não existe uma “narrativa” liberal-progressista que caiba num parágrafo e possa ser recontada em memes. Não bastasse, o centro é, por natureza, moderado. Mesmo que existisse, os algoritmos das redes gostam de distribuir o que gera atrito. O conteúdo do centro só decolará se houver a construção de uma narrativa, a produção de conteúdo em cima dela e o financiamento, pelas ferramentas das redes, para distribuir mais longe o material.

Existem brasileiros moderados. Mas, para que ser de centro vire uma identidade, é preciso construir e divulgar uma narrativa. Uma visão de Brasil. Quando acontecer, candidatos poderão surfar a onda.

 

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