O Globo
Política se tornou identidade. Ser de
esquerda ou de direita exige o ritual de estar na vida on-line reforçando
pertencer à tribo ou às subtribos
No início da semana passada, o noticiário
político foi revolvido pelos movimentos do ex-presidente Michel Temer (MDB-SP) e do governador
gaúcho Eduardo Leite (PSDB-RS) querendo
intervir na disputa pelo Planalto em 2026. O evento agitou inúmeros grupos de
zap centristas voltados para o debate de política. Não é à toa: poucos lugares
são mais solitários, no Brasil de hoje, que o centro. Por aqui, consistentemente
invertemos a ordem das coisas. Discute-se muito quem pode ser o candidato a
representar aquela visão de país que, um dia, Fernando Henrique Cardoso
representou. Como se o candidato certo bastasse para conquistar o eleitor. Não
faltam políticos capazes de ocupar esse lugar. O que falta, ora, são os
eleitores. E nenhuma força política trabalha para atraí-los.
A batalha política nesta década do novo século se trava em duas dimensões. A principal é identidade. Mas o que a molda é uma narrativa. E as duas passam, fundamentalmente, por um único meio de comunicação. São, evidentemente, as redes sociais.
Que história a direita bolsonarista conta? O
Estado foi tomado por um grupo que não tem em vista os interesses do
“verdadeiro povo”. A essa ideologia dá-se o nome de “marxismo cultural”. Eles,
no Estado, não estão sozinhos. O jornalismo, a universidade e as artes foram
igualmente controlados por esse grupo que quer impor uma visão única,
sexualmente permissiva, corrupta e contrária à propriedade privada. A
palavra-chave nessa história é “liberdade”. A elite que a tudo controla quer
impor seu estilo de vida ao povo, que, religioso e conservador, tem pouca força
para reagir, não fosse o grande líder. Ele luta para dar liberdade ao povo. Do
outro lado, está uma “ditadura”.
A história, assim contada, é fantasiosa. Mas,
de documentários da Brasil Paralelo a memes grosseiros distribuídos pelo
WhatsApp, é contada, recontada e reiterada faz pelo menos dez anos. Tudo o que
acontece no país é rapidamente reinterpretado através dessa lente. Dessa
narrativa.
A esquerda também tem uma narrativa do tipo.
Conta que a elite é de direita, controla o país desde sempre e não tolera a
ideia de justiça social. Dilma sofreu não um impeachment, mas um golpe, e Lula
foi preso por ter contrariado as elites. Ambos ousaram botar brasileiros pobres
na ponte aérea, nas faculdades. E o país não cresce porque neoliberais
rentistas são entreguistas. Querem ganhar dinheiro negociando no mercado, não
produzindo. Se não temos fábricas grandes, com legiões de operários, é porque os
investimentos são desviados de um projeto industrial brasileiro para a taxa de
juros básicos da economia, para o “mercado” que deseja ganhar sem produzir.
Inclua-se no script, claro, o identitarismo que separa os muitos oprimidos
brasileiros e grupos maiores ou menores de vítimas, dependendo de cor da pele,
gênero ou orientação sexual.
Para ser justo com a visão de esquerda, ela é
bem mais complexa do que é possível resumir num parágrafo e reúne trabalhos
sérios de muitos acadêmicos em boas universidades. Mas, na verdade, a
complexidade importa pouco. O que importa é a narrativa ser descrita num
parágrafo, caber num meme, em slogans, em vídeos de 90 segundos.
Tais mensagens controlam as redes sociais
quando o assunto é política. Republicá-las em texto, imagem ou vídeo faz parte
de um jogo de reiteração de identidade. Política se tornou identidade. Ser de
esquerda ou de direita exige o ritual de estar na vida on-line reforçando
pertencer à tribo ou às subtribos. Ser capaz de analisar os acontecimentos do
dia pelo filtro da narrativa, recontar a notícia pontuando como ela se encaixa
na visão compartilhada pela tribo é a arte diária praticada no jornalismo engajado
de uma banda e da outra.
O problema do centro é que não joga esse
jogo. Não existe uma “narrativa” liberal-progressista que caiba num parágrafo e
possa ser recontada em memes. Não bastasse, o centro é, por natureza, moderado.
Mesmo que existisse, os algoritmos das redes gostam de distribuir o que gera
atrito. O conteúdo do centro só decolará se houver a construção de uma
narrativa, a produção de conteúdo em cima dela e o financiamento, pelas
ferramentas das redes, para distribuir mais longe o material.
Existem brasileiros moderados. Mas, para que
ser de centro vire uma identidade, é preciso construir e divulgar uma
narrativa. Uma visão de Brasil. Quando acontecer, candidatos poderão surfar a
onda.
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